UMA LICENÇA, UM DESTINO !
Por Wilton Emiliano Pinto *
Entre papéis amarelados pelo tempo e lembranças que o coração insiste em não deixar morrer, encontrei um documento que, à primeira vista, poderia parecer apenas uma formalidade — uma “Licença em Caráter Precário para Trabalho de Menor”, datada de 14 de dezembro de 1959. Mas para mim, que completava 15 anos no dia seguinte, aquilo era muito mais que uma folha datilografada com carimbo e assinatura: era um rito de passagem. Era a certidão simbólica do meu primeiro encontro com o mundo adulto, com suas exigências e esperanças.
Hoje, com 80 anos de idade, revendo esse pedaço da minha história, sou invadido por uma saudade mansa, daquelas que não doem, mas aquecem. São oito décadas de vida, e ainda guardo com carinho o menino que fui — aquele que começou a trabalhar muito antes que papéis oficiais dissessem que podia.
Já fazia oito meses que eu labutava, antes mesmo de ter aquela permissão nas mãos. Brasília ainda era um canteiro de obras, nascendo em meio ao cerrado poeirento, e eu, menino-homem, plantava grama no solo vermelho do Plano Piloto. Era o verde da esperança tentando cobrir o barro e os sonhos de uma capital ainda por terminar. Também estive na Granja do Torto, onde a terra cheirava a manhã e a esforço, onde o silêncio da mata se misturava ao som dos homens construindo o futuro. Em outro turno do meu dia, vendia bananas e cocadas na ponte de madeira que ligava a Cidade Livre ao Plano Piloto — ponte essa que, como eu, fazia o esforço diário de conectar dois mundos: o da infância que se despedia e o da maturidade que chegava apressada.
Lembro-me da ponte como se fosse hoje — o barulho dos passos de trabalhadores apressados, a madeira rangendo sob os pés, o sol queimando os ombros de quem sonhava com uma vida melhor. Meus olhos de menino viam mais que uma estrutura: viam travessias. Viam possibilidades. E ali, com uma caixa de doces na mão, aprendi a negociar, a sorrir com humildade e a ouvir as histórias dos que também vinham de longe em busca de um recomeço.
A letra à mão no alto do papel, o número do protocolo, o carimbo do Departamento de Segurança Pública… tudo aquilo parecia burocrático, frio. Mas para mim era quente, vivo, pulsante. Representava a confiança de um pai que, mesmo temendo os caminhos duros do trabalho precoce, permitia que o filho ajudasse na lida e descobrisse por si mesmo o que era o peso e a honra de conquistar o próprio sustento. E foi também esse mesmo pai quem, no fim de fevereiro de 1960, com olhar firme e voz de comando sereno, determinou: “Agora é hora de voltar para os estudos”. E lá fui eu, de volta a Goiânia, para o Colégio Pedro Gomes, com os calos nas mãos e o coração cheio de histórias.
Hoje, ao olhar esse papel, com a vista um pouco embaçada pelo tempo e pela emoção, percebo que ele não apenas autorizava um menor a trabalhar — ele registrava o nascimento de um homem. Aquele menino de 15 anos que desbravou a poeira do Planalto Central carrega, dentro deste senhor de 80, a mesma coragem e o mesmo brilho no olhar.
Esse velho documento, agora resgatado dos guardados da alma, é uma fotografia viva de uma época em que o tempo corria devagar, mas a vida exigia pressa. É um retrato do menino que cresceu na marra, entre o cheiro da grama recém-plantada e o sabor doce da cocada vendida com timidez. É memória, é saudade, é raiz.
Porque aquele não foi apenas o meu primeiro emprego — foi o meu primeiro passo firme no asfalto da vida, ainda quando nem havia asfalto pronto para pisar.

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