Suspeita de matar Kim Jong-nam diz ter recebido 280 reais para fazer pegadinha de TV
Indonésia Siti Aisyah, detida na Malásia, diz ter sido contratada para esfregar loção infantil numa cena de ‘reality show’
A indonésia Siti Aisyah, uma das duas mulheres detidas pelo assassinato de Kim Jong-nam, irmão mais velho do líder norte-coreano, Kim Jong-un, ocorrido no dia 13, afirmou neste sábado que foi contratada por um grupo de homens, que identificou como coreanos ou japoneses, para protagonizar uma pegadinha televisiva envolvendo a vítima. A mulher disse ter recebido 400 ringgits (a moeda da Malásia, um valor equivalente a 280 reais) para passar loção infantil no rosto do norte-coreano. Mas esse óleo para bebês era, na verdade, o agente nervoso VX, catalogado como uma arma química pela ONU, segundo a polícia de Kuala Lumpur.
O relato da suspeita, de 25 anos, consta de um depoimento de aproximadamente 30 minutos prestado na delegacia onde ela está presa. Seu conteúdo foi revelado pelo embaixador da Indonésia em Kuala Lumpur, Andreano Erwin, e citado pelo jornal The Star.
Segundo o diplomata, Aisyah se encontra em bom estado de saúde, apesar de a Polícia ter informado que ela chegou a vomitar depois de ser presa, aparentemente devido a uma reação ao agente químico usado no crime. Um representante da Embaixada do Vietnã em Kuala Lumpur visitou a outra suspeita, a vietnamita Doan Thi Huong, mas não quis falar à imprensa.
A polícia havia revelado nesta sexta-feira que o agente nervoso VX, catalogado como uma arma química pela ONU, foi usado para assassinar Kim Jong-nam, que foi abordado pelas duas suspeitas no último dia 13 no aeroporto de Kuala Lumpur. O norte-coreano – inimigo declarado do regime do seu irmão – chegou a pedir socorro, mas morreu minutos depois, a caminho do hospital, sentindo fortes dores.
As autoridades malasianas continuam identificando a vítima como “um cidadão norte-coreano”, à espera de que algum familiar solicite o cadáver para um exame de DNA. Entretanto, o Governo da Coreia do Sul afirma desde o primeiro momento que Kim Jong-nam foi assassinado pelo regime de Pyongyang, no que Seul chegou a qualificar como um “ato terrorista”.
Além da vietnamita e da indonésia, a Polícia da Malásia deteve um químico norte-coreano e expediu mandados de prisão contra quatro outros norte-coreanos que supostamente recrutaram as agressoras para impregnar a vítima com o potente agente químico. Acredita-se que esses quatro suspeitos – Hong Song-hac, Ri Ji-hyon, O Jong-gil e Ri Jae-nam – fugiram da Malásia para Pyongyang no mesmo dia do crime.
As autoridades também pediram à embaixada norte-coreana em Kuala Lumpur que permita colher o depoimento de outras duas pessoas: Hyon Kwang-song, segundo-secretário da legação diplomática, e Kim Uk-il, funcionário da companhia aérea estatal Air Koryo.
Conforme as imagens das câmeras de segurança, no dia do crime ambos estiveram no aeroporto, onde se despediram dos quatro suspeitos norte-coreanos. Apesar da imunidade diplomática de Hyon, a Polícia malasiana promete fazer de tudo para que preste depoimento.
Kim Jong-nam nasceu em 1971, da relação entre o falecido ditador norte-coreano Kim Jong-il e a sua primeira concubina, a atriz Song Hye-rim. Chegou a ser apontado como sucessor do pai à frente do regime comunista, mas caiu em desgraça em 2001, quando foi detido no Japão com um passaporte dominicano. Nos últimos anos, viveu exilado na China, e em 2012 chamou a atenção por suas críticas a Pyongyang e ao seu sistema de sucessão.
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Kim Jong-nam escoltado no Japão, em 2001 Itsuo Inouye AP
“Não temos onde nos esconder. A única maneira de escapar é escolher o suicídio”. Com estas palavras, Kim Jong-nam suplicou, numa carta de 2012, a seu irmão maior, o líder supremo norte-coreano Kim Jong-un, que suspendesse a ordem permanente para matá-lo, de acordo com a Coreia do Sul. Cinco anos mais tarde, numa mensagem inequívoca contra possíveis adversários do regime, o filho mais velho do “Querido Líder” Kim Jong-il foi assassinado num aeroporto da Malásia.
Sua vida foi tão romanesca quanto sua morte. Fruto, em 1971, da relação extraconjugal de seu pai com a atriz Song Hae-rim, então casada, passou seus primeiros anos com a avó. Kim Jong-il queria escondê-lo para evitar provocar a ira do fundador da dinastia, Kim Il-sung, que desaprovava o romance. Pouco via o pai. Para estudar, foi enviado primeiro à Suíça, depois a Moscou. Lá, aprendeu a ter fluência em inglês e francês e a desfrutar o que chamava de “liberdade” e outros, de “boa vida”. Seu gosto pela vida noturna vem dessa época.
Finalmente, com as notícias de comportamentos escandalosos que chegavam da Europa, o jovem Kim foi chamado de volta à Coreia do Norte. Lá se tornou, durante um tempo, o queridinho do pai e até mesmo o favorito para a futura sucessão. Até que Kim Jong-il começou a prestar mais atenção aos filhos menores, Kim Jong-chul – guitarrista de talento e descartado como herdeiro por causa de seus gostos, que o pai considerava demasiado afeminados – e Kim Jong-un.
Sua queda definitiva em desgraça veio em 2001: foi surpreendido com um passaporte falso da República Dominicana ao tentar entrar no Japão, acompanhado por duas mulheres e uma criança. Segundo disse aos funcionários da imigração japonesa, queria que seu filho visse a Disneylândia em Tóquio. O “Querido Líder” explodiu em fúria.
Dois anos depois, Jong-nam se mudou para Macau, a cidade onde passaria a maior parte do tempo até sua morte. Mulherengo (sabe-se que teve duas esposas e muitas amantes) e apreciador de casinos, sempre disse não ter interesse algum em participar da política de seu país. Preferia sua “liberdade”, de acordo com a jornalista japonesa Yoji Gomi, que conheceu por acaso num aeroporto e à qual contou muita coisa sobre sua vida numa série de e-mails e duas entrevistas.
Mas em seus comentários a Gomi e a outros meios de comunicação Jong-nam também havia manifestado sua oposição ao sistema dinástico implantado em seu país. Considerava imprescindível fazer reformas para que a Coreia do Norte pudesse sobreviver, mas também pensava que as reformas implicariam necessariamente na queda da dinastia. Seu irmão Jong-un –acreditava–, era apenas um fantoche nas mãos de outros mais poderosos.
Esses comentários representaram o fim da retribuição que recebia no exílio por parte da Coreia do Norte, e também podem ter decretado sua sentença de morte. Em 2012, segundo os serviços secretos sul-coreanos, Kim Jong-un emitiu uma ordem permanente para executá-lo. Um agente norte-coreano que desertou reconheceu que tinha iniciado um plano para matá-lo num acidente. Esse plano não deu em nada, mas as ameaças devem ter sido suficientemente fortes para levar Jong-nam a escrever ao irmão pedindo clemência.
Sem sucesso, aparentemente. A trama, com ecos de atividades de espionagem da Guerra Fria, é digna de um filme de Jason Bourne. Por volta das oito horas da manhã da segunda-feira, dia 13, Kim aguardava no saguão do terminal do Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur para pegar um voo que o levaria de volta a Macau, onde morava. Duas mulheres jovens, uma delas vestida com uma camisa branca de manga com as letras LOL, se aproximaram dele e borrifaram seu rosto com um líquido.
Enquanto as supostas assassinas fugiam num táxi, o irmão mais velho de Kim Jong-un ainda conseguiu pedir ajuda no balcão de informações e explicou confusamente o que havia acontecido. Na clínica do aeroporto começou a sofrer convulsões. Duas horas após o suposto ataque, morreu na ambulância a caminho do hospital.
Os serviços secretos sul-coreanos imediatamente acusaram agentes da Coreia do Norte pelo assassinato.
A primeira prisão foi anunciada na quarta-feira: a jovem da camiseta branca foi presa ao tentar sair do país com um passaporte vietnamita. Sua companheira, de nacionalidade indonésia, Siti Aisha, e o namorado desta, cidadão malaio, caíram nas mãos da polícia um dia depois. Aisha, de acordo com o chefe da polícia indonésia, contou que acreditava de boa fé estar participando de um reality show com câmeras escondidas.
No sábado, pela primeira vez, foi anunciada a prisão de um cidadão norte-coreano, identificado como Ri Jong-chol, de 46 anos.
A Coreia do Norte reclamou o corpo. Mas não divulgou a morte aos seus cidadãos, o que ocorreu apenas três dias antes dos festejos do aniversário de nascimento de Kim Jong-il.
O acontecimento ameaça se transformar numa verdadeira disputa diplomática real entre Kuala Lumpur e Pyongyang. A Malásia reivindica, para devolver o corpo, que sejam entregues amostras de DNA dos familiares de Kim. A Coreia do Norte disse que não reconhecerá, quando forem anunciados, os resultados da autópsia que os legistas malaios fizeram no cadáver. Foi, diz o embaixador Kang Chol, “feita sem nossa autorização e sem que estivéssemos presentes”.
As informações são do EL PAÍS