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‘Sabemos que podemos ser presos’: grupo busca brecha na lei para criar clubes de maconha no Brasil

Em uma sala no centro de São Paulo, dois advogados de terno falam durante cerca de duas horas sobre cultivo de maconha. Na plateia, cerca de 40 ativistas e pesquisadores de diversos Estados brasileiros levantam dúvidas sobre o assunto e anotam cada detalhe dos slides projetados na parede.

Eles planejam abrir clubes para plantar maconha no Brasil, apesar de isso ser proibido. A BBC Brasil presenciou a primeira reunião desses cultivadores. Entre eles, há estudantes e ativistas que fazem uso recreativo da erva, pais acompanhados de seus filhos tratados com remédios à base de cannabis e até neurocientistas interessados em estudar a planta.

A intenção deles é levar a cabo, nos próximos meses, o que chamam de “desobediência civil coletiva planejada” e, desta forma, criar um debate na opinião pública e levar a questão sobre a regulamentação do plantio de cannabis para uso pessoal à Justiça. “Nós sabemos que podemos ser presos. Mas quem faz esse ativismo está disposto a correr riscos e lutar até o fim”, diz um dos interessados em participar do cultivo.

Com argumentos que vão da redução de danos ao combate ao tráfico, passando por dezenas de jurisprudências a favor do cultivo caseiro de cannabis no Brasil, usuários e ativistas querem provar que há base constitucional para plantar a erva em grupo. Uma das estratégias estudadas é tentar fazer com o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue um caso de plantio coletivo. Para esses grupos, seria alta a chance de que os ministros acabassem liberando o cultivo em associações e fixassem uma nova jurisprudência sobre a droga.

Nos últimos anos, dezenas de habeas corpus foram concedidos a plantadores de maconha no Brasil.

Um desses casos é o de Sérgio Delvair da Costa, conhecido como TCH Procê, que foi preso em Brasília em junho de 2016 com 120 pés de maconha. Ele foi indiciado por tráfico e apologia às drogas. As investigações policiais apontavam que ele distribuía sementes de maconha para todo o Brasil e mantinha um canal no YouTube com vídeos ensinando a cultivar a erva.

Cinco meses depois, Costa foi solto após um juiz conceder um habeas corpus por causa do excesso de tempo para seu julgamento. Agora, o cultivador responde ao processo em liberdade, mas pode voltar a ser preso.

Homem fumando maconha
Usuário argumenta que plantar a maconha que ele consome o ajuda a reduzir danos e evitar o financiamento do tráfico

Na Paraíba, a Justiça autorizou o funcionamento do primeiro cultivo de maconha para fins medicinais. A Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) usa a erva para produzir óleo à base de canabidiol e distribuir o produto a pacientes que sofrem de convulsões.

Mas o advogado e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) Mário de Oliveira diz que os habeas corpus concedidos a cultivadores de maconha não servem como argumento.

“Jurisprudência é igual receita de bolo: tem pra todos os gostos. Esses habeas corpus não significam que as pessoas foram absolvidas, mas apenas que elas vão responder ao processo em liberdade e que, no fim, poderão ser condenadas e voltar à prisão.”

O presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Cristiano Maronna, avalia que há riscos em iniciar um plantio para fins não medicinais no Brasil, mas diz que a estratégia dos cultivadores, apesar dos riscos, pode ter resultados favoráveis.

“É complicado porque a lei prevê pena para uso, venda e distribuição e isso pode caracterizar tráfico. É uma estratégia que claramente tem muitos riscos. Por outro lado, não há avanços sem correr riscos”, afirmou.

Maronna lembra que existe a chance de o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional o artigo 28 da Lei Antidrogas, que proíbe o porte de drogas para uso pessoal, assim que for julgado um recurso extraordinário que está parado desde 2015, quando o ministro Teori Zavascki, morto no início deste ano, pediu vista do processo.

Trâmites legais

As associações, porém, não vão escancarar as portas de seus cultivos logo no início. Elas vão se manter na ilegalidade até que sejam completamente beneficiadas pela lei. Os clubes, porém, já iniciaram todos os trâmites legais para atuar como pessoa jurídica sem fins lucrativos.

Um grupo do Distrito Federal largou na frente e já registrou em cartório o Clube Social de Cannabis, anunciada como a primeira associação para o cultivo de maconha do país.

Agora, eles iniciaram o processo para obter um Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). Especialistas afirmam que esse é um dos principais entraves legais, já que o cadastro dificilmente será concedido enquanto o consumo de maconha for considerado um crime no país.

Nas próximas semanas, uma rede de advogados e ativistas engajada no cultivo iniciará uma espécie de tour pelo país para orientar como será feito o plantio em massa e tirar dúvidas jurídicas dos usuários que têm interesse em criar associações em seus bairros.

“Eu sou usuário e hoje preciso ir a locais perigosos quando preciso comprar maconha. Quero plantar com amigos de confiança, pois saberei a qualidade daquilo que vou consumir. Proibido ou não, eu vou fumar de qualquer forma. A diferença é que hoje apenas o traficante leva vantagem”, afirmou um dos participantes da reunião, que pediu anonimato.

O advogado Ricardo Nemer, da Rede Jurídica da Reforma da Política de Drogas, afirmou que a própria legislação brasileira de combate ao tráfico dá respaldo jurídico para o cultivo de maconha no Brasil.

“A Lei de Drogas prevê que o Estado promova ações para diminuir os danos aos usuários de drogas, ainda que não consiga impedir o uso. Mas se o Estado não cumprir este dever, a pessoa é livre para procurar uma solução por conta própria. Se o usuário plantar, ele vai consumir uma maconha menos prejudicial à saúde e ainda combaterá o narcotráfico, tudo o que o poder público tem obrigação de fazer”, disse Nemer.

Pés de maconha
Grupo se reuniu no centro de São Paulo para planejar abertura em massa de clubes para cultivar maconha

A BBC Brasil recebeu relatos de que já há clubes canábicos em áreas nobres de grandes capitais brasileiras funcionando clandestinamente, como Leblon, no Rio de Janeiro, Asa Norte, em Brasília, e Jardins e República, em São Paulo.

Segundo Oliveira, conselheiro da OAB-SP, esses cultivadores seriam passíveis de processo por tráfico e incitação ao crime.

“Falar que esses cultivos vão quebrar a cadeia do tráfico é bobagem porque isso não vai acontecer nunca. Incentivar o plantio de maconha vai na contramão da história porque a maconha, depois da cerveja, é a maior porta de entrada para drogas mais pesadas, como o crack. A maconha, assim como a cerveja e o cigarro, só não fazem mal para os donos de clínicas, que enriquecem às custas de doentes e viciados”, disse Oliveira.

Já o psiquiatra e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Dartiu Xavier afirma que o efeito é o oposto e que a legalização facilita o tratamento dos usuários, além de não causar aumento do uso.

“Nos países onde os indivíduos foram autorizados a plantar cannabis, como Suíça e Espanha, houve uma migração do consumo, não um aumento. O que aconteceu é que o controle desse mercado foi retirado da mão dos traficantes e agora têm ferramentas para estudar a erva e fazer programas de tratamento e prevenção aos usuários”, disse.

Lucro zero

Entre as pessoas interessada em abrir os clubes no Brasil estão algumas que plantavam em casa e foram presas após serem denunciadas à polícia.

A intenção delas é desmontar essa estrutura caseira, alugar uma sala e dividir custos e cuidados com o plantio com até outras 50 pessoas.

Os ativistas apostam que o grande número de pessoas envolvidas em cada clube e a criação em massa dessas associações também dificultaria a ação policial. “Se prender, investigar e punir uma pessoa já é difícil, imagine 50 em cada um dos diversos clubes espalhados pelo país”, argumenta um deles.

Ainda não há data para a abertura do cultivo em massa, mas a intenção do grupo é fazer tudo de forma sincronizada – da germinação das sementes à colheita da erva.

As associações deverão ter regras rigorosas de cultivo, higiene e, principalmente, contábil, pois não poderão gerar lucro. Nenhuma parte da colheita poderá ser vendida ou mesmo distribuída para pessoas que não façam parte do clube. Para que não haja excedentes, o plantio será feito com base na demanda de consumo de cada membro cadastrado.

Apreensão de maconha
Advogados e psiquiatras ouvidos pela BBC Brasil divergem em relação ao aumento do consumo caso o cultivo de maconha seja legalizado

Todos os custos de produção serão divididos igualmente entre os membros, assim como o produto da colheita. Todos os membros devem ter mais de 18 anos, comprovar renda e não ter antecedentes criminais.

Caso sobre parte do dinheiro investido pelos associados, ele deverá ser revertido em melhorias no cultivo, como lâmpadas mais econômicas, estufas etc, segundo um dos advogados do Growroom – o maior portal sobre cultivo de maconha do Brasil – Emílio Figueiredo.

Modelo estrangeiro

A iniciativa planejada pela rede de advogados e ativistas brasileiros é inspirada em leis implantadas em países onde o plantio coletivo já é permitido, como Canadá, Uruguai e Espanha.

Na última semana, a venda de maconha foi liberada em farmácias no Uruguai. O país também permite o cultivo caseiro para consumo próprio, inclusive de forma recreativa.

A suprema corte espanhola decidiu que o pequeno cultivo para consumo próprio não prejudicava a saúde pública ou a sociedade, ao contrário das grandes plantações da erva.

Sementes de maconha
Cultivo em associação para consumo próprio já ocorre em países como Suiça, Espanha e Uruguai

Mas a medida preocupa psiquiatras, que acreditam no aumento do consumo da erva caso o cultivo seja liberado. Membro da Comissão Nacional de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Pedro Eugênio Ferreira afirmou que o uso de maconha prejudica o aprendizado e desenvolvimento de habilidades, além de causar danos ao cérebro.

“Uma pesquisa feita na Nova Zelândia apontou que consumidores pesados de maconha tiveram, em média, uma queda de 8 pontos no QI. Também ocorreu um aumento de demanda por mais droga e de problemas psiquiátricos nos países onde houve liberação do plantio e consumo de cannabis”, afirmou Ferreira.

Já o psiquiatra Dartiu Xavier vê a abertura de clubes para cultivar maconha como um grande avanço.

“O proibicionismo do uso da maconha só atrapalha o tratamento. Como você vai tratar alguém se você nem sabe o que ela usa? Se o uso da maconha fosse descriminalizado, poderia haver campanhas orientando para que os usuários parassem de fumar e passassem a vaporizar a erva, por exemplo. Quem fuma, vai fumar de qualquer jeito. A diferença é que num ambiente onde o uso é legalizado, é possível orientar, ter regras e controle”, afirmou.

Xavier também diz que fumar maconha “não deixa ninguém mais burro” e contesta o estudo sobre o QI de usuários na Nova Zelândia.

“Os próprios pesquisadores disseram depois que as pessoas tinham QI menor por serem de uma classe econômica menos favorecida, não pelo uso de maconha”, afirmou o psiquiatra.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se mostrou contrária à liberação do cultivo de maconha para fins medicinais no Brasil. O órgão protocolou no STF um documento no qual diz ser necessária uma regulamentação sobre o assunto antes de adotar a medida.

O Ministério da Justiça foi procurado, mas não quis comentar a reportagem. As informações são da BBC Brasil com fotos da AFP.