Quem são e o que pensam os brasileiros que acreditam que a Terra é plana
“Globalista, Terraplanista ou neutro?”. “Você consegue provar que a Terra é um globo, uma bola?”. “Você tem conhecimento de que o Sol e a Lua estão próximos da nossa Terra e ‘dentro’ da nossa atmosfera, (ou no firmamento) e são menores, bem menores que a Terra?”
É com perguntas como estas que grupos brasileiros de “terraplanistas” – pessoas que acreditam que a Terra é plana – no Facebook avaliam a solicitação de entrada de um novo membro no fórum virtual. Na rede social, há pelo menos 30 grupos do tipo em português.
Há também diversas páginas sobre o tema no Facebook – a maior delas, “A Terra é plana”, tem mais de 77 mil membros. Os terraplanistas também estão no YouTube, com vários canais dedicados a mostrar experimentos e discutir o que chamam de “falácias” dos “globalistas” – e versões alternativas para a explicação de fenômenos como fusos horários, estações e eclipses.
No final de agosto, os movimentos que negam o formato em globo da Terra ficaram em evidência nos Estados Unidos por apontarem supostas “falhas” nas explicações sobre o eclipse solar total que percorreu 113 quilômetros, de costa a costa, no país.
Apesar de discordâncias internas nestes grupos, em geral, os terraplanistas acreditam que a Terra é coberta pelo “firmamento”, em formato de domo; Sol e Lua fariam seus percursos dentro deste espaço, e seriam corpos muito menores do que acreditam os “globalistas”; já a Antártida ocuparia as bordas do disco da Terra.
Heliocentrismo (o fato de que o Sol está no centro do Sistema Solar e que os planetas giram em torno dele), a existência do espaço sideral e até mesmo de uma força invisível como a gravidade são questionados – só não “voaríamos” do solo por características dos corpos, como densidade, flutuabilidade e magnetismo.
A gestão territorial internacional da Antártida, inclusive, seria uma prova, para os terraplanistas, de uma conspiração que impediria a revelação da “verdade”.
“O Tratado da Antártica é rigorosíssimo. Um turista não pode dormir na Antártica, por exemplo”, disse por telefone, em entrevista à BBC Brasil, o eletrotécnico Bruno Alves, de 37 anos, proprietário do canal no YouTube “Mistérios do Mundo” e presidente do Centro de Pesquisas Terra Plana Brasil.
O grupo de pesquisas, criado recentemente, tem se reunido virtualmente, mas planeja um encontro offline em 2018 e expedições para fazer experimentos como os “testes de curvatura” – nos quais são usadas câmeras com alto grau de aproximação para “provar” que o horizonte seria sempre reto, independente da altura do observador. Para este e outros experimentos, há campanhas de crowdfunding que tentam angariar recursos.
“A cada dia temos ganhado mais adeptos, por nossos argumentos. Saímos da física teórica para a empiria. A verdade é que não podemos sentir, experimentar a teoria da Terra como um globo. Não temos como competir com a Nasa em investimentos, mas estamos fazendo pesquisa do nosso próprio bolso”, diz Alves.
Nos grupos de terraplanistas aos quais a BBC Brasil teve acesso, alguns membros admitiram que estavam nos fóruns por curiosidade ou até para se divertir com as teorias conspiratórias ali fomentadas – mas reconheceram que a maioria dos participantes leva o assunto a sério.
Um deles é Milton TP, como é conhecido na internet o técnico de informática de 48 anos que administra o grupo de Facebook “Terra Plana Brasil Exclusivo”. Morador do Rio Grande do Sul, Milton participa de ao menos cinco grupos como este e conta que a administração deles vem dando cada vez mais trabalho.
“As páginas estão aumentando, e quando as ideias são postas à prova, os ânimos ficam muito exaltados. Os globalistas acham que a gente não foi para a escola, que não temos conhecimento e somos facilmente enganados; sendo que é bem o contrário”, diz Milton, que começou a se interessar pelo tema nos primórdios da internet, quando passou a ler sobre contestações da ida do homem à Lua.
O ‘sistema’
Mundialmente, talvez a maior representação dos terraplanistas seja a Flat Earth Society (“Sociedade da Terra Plana”), que planeja uma conferência internacional em novembro nos Estados Unidos e denuncia os interesses do “sistema” na afirmação de que a Terra é um globo. Aliás, nos EUA há algumas pessoas famosas que já afirmaram publicamente que a Terra é plana, como os jogadores de basquete Shaquille O’Neal e Kyrie Irving.
Mas quem seria o “sistema”?
“Há famílias que detêm metade da riqueza do mundo. Como elas iriam controlar 7 bilhões de pessoas? É preciso um aparato filosófico, científico, educacional. Como individualizar as pessoas? Falando que somos poeira cósmica. Tudo para dividir, para enxergar próximo como adversário: é Fla-Flu, Palmeiras versus Corinthians. Se enxergássemos o outro, a união faria a força. E isso dá medo”, aponta Alves, morador do município fluminense de Niterói.
Samuel Trovão, pseudônimo usado pelo administrador da página “A Terra é plana”, também aponta para uma motivação financeira e ateia por trás do “sistema” – mas cita o nome daquele que talvez seja o maior alvo dos terraplanistas e principal promotor da teoria “globalista”: a Nasa.
“A Nasa é uma agência de efeitos especiais. Ela é uma pequena fatia do todo. Se não existe satélite, espaço, alguém ficou com bilhões. A motivação é sempre o dinheiro. Por outro lado, a teoria do globo exclui a ideia de Deus. O Big Bang nunca foi provado pelo método científico: ninguém consegue reproduzi-lo, observá-lo e medi-lo. Então, é uma teoria filosófica, e não científica”, afirmou por telefone Trovão, que conta ter 35 anos e trabalhar também como técnico de informática.
Tanto Samuel como Milton preferiram não revelar seus sobrenomes pois dizem sofrer ameaças constantes.
Segundo a Flat Earth Society, a explicação mais aceita pelos terraplanistas é a de que as agências espaciais estão envolvidas em uma conspiração que “falsifica viagens e explorações espaciais”. “Isso provavelmente começou durante a corrida espacial na Guerra Fria, onde a União Soviética e os Estados Unidos tinham a obsessão de derrotar um ao outro no espaço, ao ponto que cada um forjou suas conquistas”, diz um texto no site da organização.
Matrix
Ao lado da Nasa e de outras agências espaciais, as escolas e a mídia são frequentemente apontadas pelos terraplanistas como perpetuadores da “farsa” sobre o globo. Grandes nomes da ciência como Einstein, Copérnico e Newton chegam a ser chamados de “mentirosos” e terem suas imagens expostas em memes. Enquanto isso, referências ao filme Matrix servem para valorizar o discurso dos terraplanistas.
“No filme Matrix, Mr. Smith tem a capacidade de possuir qualquer corpo em qualquer momento e isso geralmente acontece quando a ‘Matrix’ se sente ameaçada”, diz uma postagem da página “A Terra é plana”. “Esse exemplo é um reflexo da nossa realidade. Vamos supor que você está tomando um café em um restaurante e conversando com um amigo. Tudo está indo bem. Até você mencionar algo como ‘sabia que a Terra é plana?’ Observe o que acontece. Então surge Mr. Smith para substituir a pessoa que estava conversando contigo para te atacar, te zombar e ridicularizar porque esse tipo de informação é uma ameaça para a Matrix. A Matrix foi programada durante a época de formação das crianças e por causa da programação ‘Mr. Smith’, essas pessoas se tornam guardiões da Matrix, protetores do código, policiais do pensamento, reforçadores da doutrinação (…).”
Segundo Bruno Alves e Samuel Trovão, parte significativa dos terraplanistas é criacionista (negam a teoria da evolução proposta por Darwin e explicam a origem do planeta e dos homens como criação divina). Acreditam na Bíblia e em escrituras antigas, sem seguir uma religião específica.
“A descrição da Terra na Bíblia condiz com outras cosmologias. Egípcios, maias, gregos, romanos, incas, praticamente todas as civilizações extintas falavam em Terra plana. Estamos tentando reconstruir esses conhecimentos. Todo mundo que tenta provar que a Terra é um globo vira terraplanista, porque não tem prova. A única comprovação do globo seriam fotos da Nasa. Isso é fé, você está acreditando na teoria deles. Seja sua própria autoridade”, sugere Trovão. “Existe uma bibliografia de mais de 150 livros sobre a Terra plana. O debate nunca morreu: ele foi ocultado e censurado.”
Segundo Milton TP, para sustentar que a Terra é plana, “é preciso ser forte, pois são ideias que vão contra a maioria”. Ele diz, por outro lado, que a forte concentração de profissionais que trabalham com informática dentre os terraplanistas – como os três que aparecem nesta matéria – não é por acaso:
“Estamos sempre buscando a lógica e o conhecimento. Se você olha as explicações para a incidência do Sol na Terra, a gravidade e em muitos outros pontos, há muita coisa que não fecha. A principal prova contra o globo é a própria falta de prova disso.”
Milton diz que, diferente da internet, sua defesa da Terra plana não gera hostilidades em seu meio social – pelo contrário, segundo ele, sua mãe e um irmão concordam com este argumento.
“Minha mãe tem 82 anos, é do interior. A proximidade com a natureza sempre traz uma visão diferente das coisas, que a cidade não dá”, afirma o administrador do “Terra Plana Brasil Exclusivo”, para quem as teorias defendidas pela ciência fogem a um conhecimento empírico, sensível e natural. “Na escola a gente perguntava: como a água não cai da Terra? Isto porque essa explicação sobre a gravidade foge à lógica, ao nosso conhecimento natural, onde embaixo é embaixo e em cima é em cima”.
O que diz a ciência
A ideia do formato em globo veio bem antes da Nasa. O filósofo grego Aristóteles, no livro Do Céu, defendeu a esfericidade da Terra com base nas mudanças de configuração das estrelas dependendo da posição na Terra, na sombra circular de nosso planeta durante eclipses lunares e até na semelhança entre elefantes de regiões distantes.
Séculos mais tarde, entre 1519 e 1522, ao circunavegar o planeta, o português Fernão de Magalhães não apenas trouxe um forte argumento ao formato de globo do planeta como também abriu caminho para a descoberta de novas e mais rápidas rotas marítimas.
Depois vieram os enunciados pioneiros de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton sobre a mecânica de posicionamento dos planetas no Sistema Solar. Newton previu um achatamento da Terra nos polos, além de ter publicado, em 1687, a Lei da Gravitação Universal.
A lei explica a influência gravitacional (a força de atração exercida entre as massas de dois objetos) entre corpos espaciais, como entre a Lua e a Terra e os planetas que compõem o Sistema Solar (orbitando ao redor do Sol). Segundo apontou Newton, dois corpos se atraem segundo uma força que é diretamente proporcional a suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa.
Já no que diz respeito à evolução, teoria consagrada com a obra de Charles Darwin A Origem das Espécies e contestada pelos criacionistas, evidências apontam para um longo processo adaptativo das espécies – percurso do qual fazem parte os seres humanos. Tal teoria, reforçada por evidências genéticas e geográficas, explica a variedade, adaptação e extinção de milhares de espécies ao longo dos milênios.