Processo mais ágil pode beneficiar 450 mil brasileiros à espera de cidadania italiana
O número de concessões de nacionalidade italiana mais que triplicou num período de cinco anos. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística da Itália (Istat), 159 mil estrangeiros se tornaram cidadãos do país europeu em 2015, enquanto 50 mil tinham obtido a cidadania em 2011.
No Brasil, a rede consular italiana reconheceu 12 mil pedidos de nacionalidade somente em 2016, além de ter emitido 21 mil passaportes. E a expectativa é de que esse número aumente nos próximos anos, com a diminuição da burocracia para solicitar a cidadania nas representações diplomáticas do país europeu no território brasileiro.
A medida que contribuiu para esse aumento significativo foi a entrada em vigor, no Brasil, da Convenção da Apostila da Haia, que eliminou a obrigatoriedade de os documentos públicos brasileiros serem legalizados pela rede consular italiana para o processo de obtenção da cidadania.
Desde agosto do ano passado, para que um documento seja considerado válido para os serviços italianos, basta se dirigir a um cartório brasileiro que forneça esse serviço e solicitar a emissão de uma “Apostila da Haia”. As cópias de todos os documentos solicitados devem passar por essa autenticação.
A apostila da Convenção da Haia é um acordo que prevê que um documento expedido ou autenticado por autoridades públicas dos estados signatários possam ser certificados para que obtenha valor legal em todos os países que participam do acordo, como uma espécie de certificação.
Apesar do aumento no custo do processo, os consulados defendem que essa nova prática pode reduzir o tempo de espera já que a validação desses documentos ocupava o tempo de muitos funcionários das representações diplomáticas, que agora estarão livres para tratar de outros assuntos inclusive dos processos de cidadania.
A mudança pode vir a ser um marco divisor de águas no já conhecido longo processo de obtenção de cidadania italiana.
Agilidade diplomática
Em declarações à imprensa após a implementação do novo processo, o cônsul italiano em Porto Alegre, Nicola Occhipinti, explicou que a Apostila da Haia aliviou a pesada carga de trabalho dos consulados, agilizando o processo para que a documentação dos postulantes à cidadania chegue mais rapidamente às autoridades na Itália.
Occhipinti disse ainda que a expectativa é de que, já no próximo ano, o tempo de espera para a obtenção da cidadania italiana caia para seis anos. Atualmente, o período médio de espera é de 10 anos.
Como consequência dessa maior agilidade, as novas regras para a validação dos documentos devem reduzir a longa fila de brasileiros em busca da nacionalidade.
Segundo o Ministério das Relações Exteriores da Itália, havia no fim do ano passado mais de 112 mil requerimentos à espera de análise no Brasil.
Como cada um desses requerimentos abrange, em média, quatro pessoas, a estimativa é de que cerca de 450 mil descendentes de italianos estejam na fila para a dupla nacionalidade no país.
Quem tem direito?
Têm direito à nacionalidade os descendentes de italianos e os cônjuges de cidadãos do país europeu. O casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não é aceito para a obtenção da cidadania, mas o recente reconhecimento da união civil de um brasileiro com o seu parceiro italiano aumentou a esperança de que essa realidade mude num futuro próximo.
O interessado em obter a cidadania deve encaminhar o pedido à representação diplomática italiana da área onde vive. Só é possível entrar com o processo diretamente na Itália se o requerente estabelecer residência legal no país europeu – e é preciso cuidado com propostas tentadoras.
No começo do ano, um policial italiano foi preso por fornecer comprovantes de residência falsos a brasileiros.
Combate ao envelhecimento populacional
A agilização do processo de obtenção da nacionalidade não será benéfica apenas para os descendentes de italianos nascidos no Brasil, que terão em mãos um documento que lhes permite viver em qualquer um dos países-membros da União Europeia. Também poderá gerar benefícios ao próprio país europeu, que atualmente luta contra o envelhecimento da sua população.
O relatório “Situação da População Mundial 2016”, publicado no fim do ano passado pela Organização das Nações Unidas (ONU, indica que 23% dos residentes da Itália têm 65 anos de idade ou mais – a porcentagem populacional de idosos mais alta entre todos os países da Europa.
Além disso, segundo o Istat, o número de nascimentos na Itália está caindo ano a ano desde 2008, e em 2015 o total de residentes do país diminuiu pela primeira vez em 90 anos.
Cidadania ‘jure sanguinis’
A Itália é um dos poucos países que não impõe limite de gerações para os descendentes que desejam obter a cidadania pela linhagem familiar, conhecida como jure sanguinis (direito de sangue, na expressão em latim).
No entanto, é preciso que todos os ascendentes diretos do lado italiano do requerente sejam do sexo masculino. Se houver uma mulher entre os ascendentes, o descendente direto da mesma precisa ter nascido a partir de 1º de Janeiro de 1948 para que o solicitante possa ter direito à nacionalidade.
Concretamente, um brasileiro que seja trineto de italiano terá direito à cidadania se os seus ascendentes dessa linha de transmissão da nacionalidade forem todos homens (bisavô, avô e pai). Mas se nesse percurso um deles for mulher (por exemplo: bisavô, avó e pai), o solicitante não poderá pedir a nacionalidade caso o filho dela tenha nascido antes de 1948
Essa limitação acontece porque, antigamente, a legislação do país europeu não permitia que as mulheres transmitissem a nacionalidade aos filhos e aos cônjuges.
Depois de confirmar que tem o direito à cidadania, o interessado deve procurar a representação diplomática da sua área de residência e entrar na fila de espera para apresentar a documentação necessária.
Os consulados nas principais cidades do Brasil realizam o agendamento pela internet. No caso da Embaixada italiana em Brasília, é necessário enviar um formulário e a cópia da documentação requerida por correios e aguardar pela resposta à solicitação.
Cada requerente maior de idade deve apresentar um pedido único de agendamento. No caso de filhos menores, o pedido deve ser feito em conjunto com o pai.
Os descendentes de italianos interessados em obter a nacionalidade do país europeu devem apresentar a ficha de cadastro da representação consular devidamente preenchida; cópia simples da carteira de identidade (não são aceitas carteiras profissionais e a Carteira Nacional de Habilitação), e comprovante de residência recente.
Além disso, é preciso apresentar todas as certidões de registro civil (nascimento, casamento e óbito) disponíveis tanto do solicitante como dos seus ascendentes, até chegar ao cidadão italiano. Esses documentos devem estar legalizados pela Convenção da Apostila da Haia e traduzidos ao italiano por um tradutor juramentado.
Documentos do ascendente italiano
Os requerentes também precisam apresentar uma série de documentos do cidadão italiano de quem querem herdar a cidadania europeia. O primeiro deles é o registro de nascimento italiano, conhecido como ‘Estratto dell’atto di nascita’.
Segundo o Consulado Geral da Itália em São Paulo, esse documento deve ser solicitado ao Comune (município) italiano onde nasceu o ascendente detentor da nacionalidade.
“Caso o Comune informe que não há possibilidade de emissão do Estratto dell’atto di nascita, pelo fato de o ascendente ter nascido quando ainda não existiam os registros de estado civil na Itália, poderá ser apresentada a Certidão de Batismo, também original, emitida pela paróquia local e contendo o reconhecimento da Cúria Episcopal competente pela paróquia de emissão”, explica a representação diplomática no seu site oficial.
Também é necessário apresentar a Certidão Negativa de Naturalização do ascendente europeu, emitida pelo Ministério da Justiça brasileiro. Se o italiano tiver se naturalizado brasileiro, somente poderão requerer a nacionalidade os filhos nascidos antes do decreto de naturalização.
Além disso, é necessário apresentar as certidões de casamento e óbito (se for o caso), do ascendente italiano, em segunda via original e em bom estado de conservação. Os documentos brasileiros também terão de ser legalizados com a Apostila da Haia.
Naturalização por casamento
Os brasileiros casados com italianos também podem solicitar a nacionalidade, que acontece por meio da naturalização.
Se o casal vive no Brasil e ainda não possui filhos, é preciso estar casado há três anos para entrar com o processo. Se já possui filhos, o tempo mínimo exigido de casamento é de um ano e meio.
No caso de casais que vivam na Itália, com apenas dois anos de casamento já é possível fazer o pedido de dupla nacionalidade.
O pedido de cidadania pelo casamento é realizado diretamente à justiça italiana, mas pode ser feito pela internet. É preciso se cadastrar no site do Ministério do Interior da Itália e preencher um formulário utilizando as credenciais de acesso recebidas.
O solicitante deverá ainda anexar cópias digitalizadas dos seguintes documentos, todos legalizados pela Apostila da Haia e traduzidos para italiano por um tradutor juramentado: certidão de nascimento, emitida no máximo há 180 dias; certidão de antecedentes criminais brasileira e de todos os países em que o requerente tenha vivido; documento de identidade (passaporte ou RG), e comprovante de pagamento da taxa de 200 euros (R$ 675).
Após ter o pedido deferido, o requerente será convocado a comparecer à representação diplomática de onde vive para apresentar os originais de toda a documentação e também um comprovante de residência.
Para obter a nacionalidade, o solicitante não pode se divorciar do cidadão italiano durante o processo. Também não é possível solicitar a cidadania caso o cônjuge italiano já tenha morrido.
Além disso, a atual legislação italiana não estende o benefício da obtenção da cidadania a casais em regime de união estável ou a casais gays.
“O estrangeiro casado com uma italiana e a estrangeira casada com um italiano podem solicitar a naturalização, mas no momento isso não se aplica aos casais formados por pessoas do mesmo sexo”, diz à BBC Brasil o advogado italiano Luigi Paiano, especialista no processo de obtenção da nacionalidade.
No entanto, a história de um brasileiro que vive na Itália sugere que esta barreira relativa aos casais gays pode ser derrubada num futuro próximo. Segundo uma reportagem publicada pela agência de notícias italiana Ansa, um brasileiro identificado como Fernando se tornou, em setembro do ano passado, o primeiro cidadão extracomunitário a ter a união civil gay reconhecida pela justiça do país europeu.
Após o reconhecimento da união, Fernando, que se relacionava há anos com um italiano e estava no país europeu com um visto de turista, pôde dar entrada com o pedido para legalizar sua residência na Itália, o que aumentou a esperança dos que defendem que o direito de naturalização seja estendido aos casais gays.
Processo diretamente na Itália
O longo prazo para conseguir a cidadania italiana através dos postos diplomáticos no Brasil tem levado muitos descendentes de italianos a entrar com o pedido diretamente no país europeu.
Enquanto o processo no Brasil demora de cinco a 10 anos, na Itália é possível obter a dupla cidadania em poucos meses.
“Há pouco tempo, não demorava mais do que três meses para a conclusão de todo o procedimento, mas esse prazo agora é um pouco maior porque o número de processos vem aumentando consideravelmente”, diz Paiano.
Mas é preciso cuidado no momento de optar por dar entrada no processo diretamente no país europeu, pois é necessário ter uma residência oficial na Itália para que o processo seja deferido.
“É possível e legal que um cidadão brasileiro entre com o processo diretamente na Itália, mas para isso ele deve se tornar um residente da Itália, de acordo com o que estabelece a lei italiana”, explica Paiano.
A burocracia para se obter um comprovante de residência nos moldes legais italianos tem levado muitos descentes a procurar atalhos para dar prosseguimento ao processo, uma opção muitas vezes arriscada.
Em janeiro, o policial italiano Sergio Broscritto foi preso nas cercanias de Milão, acusado de fornecer comprovantes de residências falsos a estrangeiros – principalmente brasileiros – interessados em obter a dupla nacionalidade.
Segundo a imprensa italiana, Broscritto teria falsificado 280 comprovantes de residência. O policial foi acusado de operar em parceria com uma agência da cidade de Massalengo, que cobraria até 6 mil euros (R$ 20 mil) de brasileiros por todo o processo de reconhecimento da nacionalidade.
Custos no Brasil e na Itália
O valor que o solicitante desembolsará para obter a cidadania dependerá, em primeiro lugar, do local escolhido para dar entrada no processo. Na Itália, o precedimento geralmente custa a partir de R$ 15 mil. No Brasil, pode sair por volta dos R$ 5 mil.
Esses valores, no entanto, variam de caso a caso, dependendo do número de documentos que devem ser legalizados e traduzidos para o italiano. A necessidade de buscar documentos originais na Itália também influenciará no investimento final.
Para os brasileiros que desejam viver na Itália mas não podem obter a dupla cidadania, o caminho é optar um por um dos vistos de residência que o país europeu oferece a cidadãos extracomunitários.
A legislação italiana oferece diferentes tipos autorizações de residência a estrangeiros, sendo os mais comuns para estudo, trabalho subordinado e trabalho autônomo.
Especialistas italianos em imigração explicam que também é possível obter uma autorização de residência para investimento, desde que o estrangeiro aplique a partir de 1 milhão de euros (R$ 3,3 milhões) no país europeu.
Segundo o Eurostat, o organismo oficial de estatísticas da União Europeia, 104.779 mil brasileiros residiam legalmente na Itália em 2016, o número mais alto entre os países com dados disponíveis no levantamento.
Por BBC Brasil