Por que o Bolsa Família é mais polêmico que as pensões militares?
As minhas enteadas têm uma amiga cuja mãe era médica no Exército, com patente de coronel. Ela parou de trabalhar cedo e ganha uma aposentadoria muito generosa, que depois de seu falecimento vai passar para a filha.
Sempre achei isso inacreditável. Parece um privilégio além das condições do país, mas que com certeza demonstra o reconhecimento da importância estratégica das Forças Armadas para a governabilidade.
Surpreende-me que pagamentos assim não sejam mais polêmicos no debate doméstico. Cheguei à conclusão de que a noção de hierarquia tem raízes tão profundas por aqui que um privilégio como esse, praticamente um “suborno legal”, pareça algo dentro da normalidade.
Apesar disso, já é mais comum ouvir críticas sobre programas sociais como Bolsa Família, frequentemente classificados como um “assistencialismo que só cria dependência”.
Pode ser. Mas há um quadro maior. No exemplo dado acima, a mãe da amiga das minhas enteadas agora mora em Portugal. Sua filha se estabeleceu na Irlanda. Portanto, no caso dela, a aposentadoria se trata de um subsídio que o Estado brasileiro concede para a economia europeia.
Não há o mesmo risco com o Bolsa Família. Pouco do dinheiro vai para contas de poupança. Vai ser gasto, aqui no Brasil, gerando um efeito multiplicador e animando o comércio local.
Claro, é polêmico separar pagamentos por um conceito de merecimento. Mas quem se incomoda muito com isso deve se preparar: a política do futuro promete ser cheia de propostas amplas neste sentido.
A ideia de uma renda básica universal (Universal Basic Income, ou UBI em inglês) está ganhando adeptos, com argumentos a favor tanto à direita como à esquerda do espectro político – embora com diferenças de propostas.
Os defensores de direita enxergam a UBI como um meio de minimizar as funções do Estado; já os de esquerda buscam o oposto. O que ambos têm em comum é a abordagem de um grande problema.
O sistema precisa de consumo. Sem consumo, a casa cai. Mas o consumo está ameaçado.
Primeiro, sofre por conta do poder que os políticos, com pouca sabedoria, deram para o setor financeiro, que pode até ser um bom servo, mas faz um mestre muito ruim.
Os bancos lucram com a dívida alheia e, sem os regulamentos que limitavam as suas ações, as instituições bancárias são capazes de criar uma dívida tão grande e de inflar tanto os preços de imóveis que o dinheiro para consumir produtos e serviços acaba rarefeito – um buraco que o credito só consegue tapar de maneira temporária.
Segundo, o consumo sofre da estagnação de salários, um processo que provavelmente vai continuar.
No percurso de sua história dinâmica, o capitalismo destrói para criar. É sempre traumático, mas a transição é facilitada pelo fato de que normalmente a atividade nova paga melhor do que a anterior.
Mas isso não se aplica mais. A revolução digital tira funções, e a reprodução quase de graça desafia conceitos comuns de precificação. E também há o desenvolvimento da tecnologia – robôs são capazes de substituir a mão de obra e logo serão capazes de substituir muito mais.
Eles já podem desenvolver funções manuais, e quando conseguirem passar no Teste de Turing e produzir a inteligência de um ser humano, vão poder desempenhar funções cerebrais.
Tudo isso é muito interessante para empresas – no curto prazo. Inicialmente, elas podem reduzir os seus custos com a mão de obra, mas logo têm um problemão: como consumidores, robôs têm deficiências graves – eles não compram nada. Como e para quem, então, a empresa vai vender o que produz?
Aí entram na pauta os benefícios de um sistema de renda básica universal. Não é uma ideia fácil, e organizá-lo é uma dor de cabeça burocrática.
Na verdade, a burocracia teria que ser muito maior se o sistema não fosse universal. Ter de decidir quem seriam os beneficiários – seria impossível de implementar de uma maneira justa. Mas a universalidade desafia todas as nossas noções de merecimento, da ligação entre suor e renda.
Mas, pensando bem, por que somente coronéis aposentadas têm direito a uma boa vida?
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.