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Por que o Bolsa Família é mais polêmico que as pensões militares?

As minhas enteadas têm uma amiga cuja mãe era médica no Exército, com patente de coronel. Ela parou de trabalhar cedo e ganha uma aposentadoria muito generosa, que depois de seu falecimento vai passar para a filha.

Sempre achei isso inacreditável. Parece um privilégio além das condições do país, mas que com certeza demonstra o reconhecimento da importância estratégica das Forças Armadas para a governabilidade.

Surpreende-me que pagamentos assim não sejam mais polêmicos no debate doméstico. Cheguei à conclusão de que a noção de hierarquia tem raízes tão profundas por aqui que um privilégio como esse, praticamente um “suborno legal”, pareça algo dentro da normalidade.

 Tim Vickery
Para Tim Vickery dinheiro do Bolsa Família impulsiona economia local  – Imagem Eduardo Martino

Apesar disso, já é mais comum ouvir críticas sobre programas sociais como Bolsa Família, frequentemente classificados como um “assistencialismo que só cria dependência”.

Pode ser. Mas há um quadro maior. No exemplo dado acima, a mãe da amiga das minhas enteadas agora mora em Portugal. Sua filha se estabeleceu na Irlanda. Portanto, no caso dela, a aposentadoria se trata de um subsídio que o Estado brasileiro concede para a economia europeia.

Não há o mesmo risco com o Bolsa Família. Pouco do dinheiro vai para contas de poupança. Vai ser gasto, aqui no Brasil, gerando um efeito multiplicador e animando o comércio local.

Claro, é polêmico separar pagamentos por um conceito de merecimento. Mas quem se incomoda muito com isso deve se preparar: a política do futuro promete ser cheia de propostas amplas neste sentido.

 

A ideia de uma renda básica universal (Universal Basic Income, ou UBI em inglês) está ganhando adeptos, com argumentos a favor tanto à direita como à esquerda do espectro político – embora com diferenças de propostas.

Os defensores de direita enxergam a UBI como um meio de minimizar as funções do Estado; já os de esquerda buscam o oposto. O que ambos têm em comum é a abordagem de um grande problema.

O sistema precisa de consumo. Sem consumo, a casa cai. Mas o consumo está ameaçado.

Primeiro, sofre por conta do poder que os políticos, com pouca sabedoria, deram para o setor financeiro, que pode até ser um bom servo, mas faz um mestre muito ruim.

Os bancos lucram com a dívida alheia e, sem os regulamentos que limitavam as suas ações, as instituições bancárias são capazes de criar uma dívida tão grande e de inflar tanto os preços de imóveis que o dinheiro para consumir produtos e serviços acaba rarefeito – um buraco que o credito só consegue tapar de maneira temporária.

Segundo, o consumo sofre da estagnação de salários, um processo que provavelmente vai continuar.

No percurso de sua história dinâmica, o capitalismo destrói para criar. É sempre traumático, mas a transição é facilitada pelo fato de que normalmente a atividade nova paga melhor do que a anterior.

Mas isso não se aplica mais. A revolução digital tira funções, e a reprodução quase de graça desafia conceitos comuns de precificação. E também há o desenvolvimento da tecnologia – robôs são capazes de substituir a mão de obra e logo serão capazes de substituir muito mais.

Eles já podem desenvolver funções manuais, e quando conseguirem passar no Teste de Turing e produzir a inteligência de um ser humano, vão poder desempenhar funções cerebrais.

Tudo isso é muito interessante para empresas – no curto prazo. Inicialmente, elas podem reduzir os seus custos com a mão de obra, mas logo têm um problemão: como consumidores, robôs têm deficiências graves – eles não compram nada. Como e para quem, então, a empresa vai vender o que produz?

Aí entram na pauta os benefícios de um sistema de renda básica universal. Não é uma ideia fácil, e organizá-lo é uma dor de cabeça burocrática.

Na verdade, a burocracia teria que ser muito maior se o sistema não fosse universal. Ter de decidir quem seriam os beneficiários – seria impossível de implementar de uma maneira justa. Mas a universalidade desafia todas as nossas noções de merecimento, da ligação entre suor e renda.

Mas, pensando bem, por que somente coronéis aposentadas têm direito a uma boa vida?

 

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.