Por que empresária decidiu contratar presos para bordar e aumentar a produção de sua empresa
A bordadeira Milena Curado causou espanto em Goiás Velho, interior de Goiás, quando começou a contratar – e pagar – presidiárias para aumentar a produção.
“Quando resolvi desenvolver o projeto, foi um susto na família. Um tio meu disse: ‘você está ficando louca? Como é que você vai mexer com preso?'”, diz ela à BBC Brasil.
“Tenho consciência de que pode ter uma rebelião e eu estar ali no meio. Quando estou ali, estou presa com eles, mas isso não me assusta.”
Iniciado em 2008, o trabalho passou a envolver também a ala masculina da cadeia. Atualmente, cerca de 20 dos 52 detentos do presídio local – 19 homens e uma mulher, a única cumprindo pena atualmente – fazem bordado artesanal em roupas, bolsas, almofadas e panos vendidos pela Cabocla Criações em todo o Brasil.
E há uma lista de espera de interessados em participar.
O projeto, que trabalha com técnicas e motivos tradicionais de bordado da região, recebeu o prêmio máximo do Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e Milena tornou-se a primeira mulher do Estado a ganhar o troféu ouro do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) para mulheres empreendedoras.
A contratação de presos não é novidade. No Brasil, aproximadamente 116 mil dos 662 mil presos trabalham, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Destes, pelo menos 42 mil ocupam vagas criadas por empresas privadas.
Mas Milena acredita que seu projeto pode inspirar outros pequenos empresários.
“Eu não estou lá porque sou boazinha ou porque tenho dó de preso. Não sou da pastoral carcerária. O que me levou ao presídio foi saber que eles teriam tempo disponível. Eu precisava da mão de obra e eles são comprometidos (com o trabalho), é uma troca”, afirma.
“Sou microempresária. Por isso, só tenho direito a assinar a carteira de um funcionário. Para contratar mais pessoas, precisaria ter uma empresa grande. Como não tenho, só poderia pagar, por peça, pessoas que tivessem o bordado como atividade secundária. Elas não teriam o tempo necessário para fazer o trabalho.”
Produtos ‘de luxo’
A “troca” significa que os homens e mulheres encarcerados recebem de acordo com o tipo de peças que bordam, e ganham, em média, R$ 50 por semana.
Segundo o Depen, a legislação brasileira permite aos presos serem contratados em diversas modalidades, incluindo pela própria Lei de Execução Penal, que deixa a empresa contratante livre de encargos patronais.
Além disso, o bordado garante remissão da pena – eles ficam um dia a menos na cadeia para cada três dias de trabalho.
“Quando comecei o projeto, não tinha muita noção de como a remissão funcionava. Comecei por instinto e porque precisava de gente com tempo para se dedicar ao trabalho. As presas é que me cobraram isso (a remissão)”, relembra.
Um acordo com a Justiça local também permitiu que o pagamento fosse feito diretamente aos detentos.
“Temos um presídio pequeno, que deveria ser de caráter provisório, mas se transformou em local de cumprimento de pena. Por isso foi possível pagá-los diretamente”, explica Edivar da Costa Muniz, promotor de Justiça do Ministério Público, que acompanha o projeto desde o início e ajudou a regularizá-lo.
“Em presídios maiores, se abre uma conta-poupança no nome desse detento para que ele possa levantar o dinheiro quando sair de lá ou para que a família tenha acesso.”
De acordo com a lei, o Estado deve fornecer aos presos alimentação, vestimenta e produtos básicos de higiene. Por causa de restrições orçamentárias, no entanto, isso muitas vezes não acontece.
O trabalho na cadeia permite que as famílias dos próprios detentos – ou associações de auxílio como a Pastoral Carcerária, da Igreja Católica – possam comprar para eles itens de necessidade básica como absorvente, no caso das mulheres, ou xampu.
“Um deles me escreveu dizendo que o bordado proporciona para ele produtos de ‘luxo’ na cadeia: creme dental, copo de suco”, diz Milena.
“E muitos também mandam dinheiro para fora. Ao invés de as famílias os manterem lá dentro, eles mesmos podem se manter ou ajudar suas famílias.”
‘Escola de bordado’
Uma notícia sobre uma mulher que fazia trabalho artesanal em um presídio feminino deu a Milena a ideia de recrutar detentas como mão de obra.
Naquele momento, o presídio feminino em Goiás Velho tinha cinco mulheres presas, a maioria por tráfico.
“Eu disse a elas que estava trabalhando com uma produção de roupa bordada e precisava de pessoas. Elas disseram que não sabiam bordar e eu disse que ensinaria. Toparam na hora”, relembra.
“No outro dia, fui com minha mãe pra dentro da cadeia e fizemos uma oficina de quatro horas.”
Segundo Milena, o novo trabalho fez diferença na vida das detentas, que antes “ficavam o dia inteiro escrevendo cartas para a família e criando confusão”.
“Com o bordado, elas ficaram até mais amigas, porque tinham o que dividir. E passaram a ter renda para cobrir as despesas. Se querem um xampu, um absorvente, uma tinta para passar no cabelo, conseguem comprar.”
Duas das mulheres foram presas junto com seus maridos, que ficavam na ala do pequeno presídio dedicada aos homens. Uma vez por semana eles tinham direito a visitas íntimas que, surpreendentemente, usaram para bordar.
Dentro do setor masculino, a escola de bordado cresceu sem que Milena e sua mãe interferissem. “As mulheres ensinaram aos maridos e os homens passaram uns para os outros. No fim das contas, nunca precisei capacitá-los.”
“Agora temos uma lista de espera para os que querem entrar no projeto. Não dou conta de dar serviço a todos. É bem concorrido lá dentro”, diz.
Ledney Dorian Cordeiro Mendonça, ex-carcereiro e agora diretor da Unidade Prisional de Goiás, afirma que o trabalho melhorou o comportamento dos presidiários, mas critica o fato de que, quando saem da prisão, não são automaticamente empregados por Milena.
“Acho que para a execução da pena do preso, o projeto soma, sim. Eles se ocupam daquilo e não querem perder o benefício. Então acabam desenvolvendo senso de responsabilidade, assumindo um compromisso em relação à atividade”, avalia.
“Mas o impacto social é quase irrisório, porque não há uma oficina extra-muro para eles. Acho que o projeto peca ao não ter uma continuidade fora da cadeia.”
A empresária afirma, no entanto, que o tamanho de sua empresa determinaria que, para contratar mais pessoas fora da cadeia, teria de deixar de contratar as de dentro.
“A função do projeto sempre foi atendê-los quando eles estão lá dentro. Quando saem, podem buscar outras oportunidades. Quem está na prisão é que não pode”, diz.
“Nem todos eles vão viver do bordado ao saírem, é verdade. Mas quando ele sairem, pode ser que reflitam sobre terem vivido do próprio trabalho na cadeia.”
Vínculo
Apesar de afirmar que “não tem dó de preso”, Milena admite que foi “mais sentimental” em relação aos detentos no início do projeto. Mas um episódio mudou sua visão.
“Teve uma vez em que a polícia entrou na cadeia e danificou o trabalho deles, rasgou algumas peças. E eles queriam me pagar as peças e eu disse: ‘De jeito nenhum'”, relembra.
“Fui até a juíza chorando, emocionada, e ela me lembrou que estava lidando com presos. Depois, uma detenta me disse que eles haviam escondido um chip de telefone celular debaixo dos bordados.”
Depois disso, diz Milena, percebeu que era importante manter uma relação apenas profissional com os condenados.
“Não pode chegar muito boazinha, muito caridosa não, porque tem os que abusam, todo dia querem uma coisa”, afirma.
Em alguns casos, no entanto, é inevitável criar um vínculo. Pelo menos dois detentos tornaram-se seus amigos e continuam ligados ao Projeto Cabocla.
Mas a amizade mais surpreendente talvez seja a que cultiva com o norueguês Carsten, preso após espancar e torturar uma mulher que Milena conhece.
“Por um tempo, tive medo, fugia dele, e quando eu vi ele estava no projeto. Mas hoje abrandei o coração. A gente tem que repensar os conceitos.”
Empolgado com o projeto, que diz ter contribuído para que ele aprendesse português, ele escreve cartas e até letras de rap sobre o tema, que envia a Milena.
“Não existe ensinamento sem o aprendizado. Com eles, o que mais aprendi é que ninguém é melhor do que ninguém. Na situação em que eles estão hoje, qualquer um pode estar futuramente”, diz a empresária.
“Se hoje eu tenho uma produção que tem qualidade, essa produção vem deles. Da mesma maneira que eu preciso deles, eles precisam de mim.”
Da BBC BrasilImagens JÚLIO CÉSAR MAHR