Por que a China aposta na língua portuguesa
O ensino da língua portuguesa encontra-se em vertiginosa expansão em universidades chinesas, e o governo de Pequim não tem medido esforços nem investimentos para liderar os estudos sobre a língua de Camões e Machado de Assis na Ásia.
O vetor dessa expansão está em Macau – cidade chinesa que foi domínio português entre 1557 e 1999. Segundo o coordenador do Centro da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau, professor Carlos Ascenso André, a crescente presença da língua em universidades chinesas é fruto de uma estratégia clara de difusão e expansão do português na China. Nos últimos dez anos, o número de universidades chinesas que ensinam português praticamente quadruplicou, passando de seis para 23 instituições.
Segundo ele, há atualmente centenas de bolsas para estudantes do interior da China virem a Macau aprender a língua, além de ações promovidas pela equipe do Instituto Politécnico para desenvolver centros de estudos em outras universidades do país.
Segundo Caio César Christiano, professor brasileiro contratado há um ano pelo Instituto Politécnico, “Macau assumiu a incumbência de ser o centro difusor da língua portuguesa na China. É um desejo claro de a China formar muitos professores e tradutores de língua portuguesa”.
Colônia até 1999
Macau sempre teve importância estratégica singular. Tornada domínio do Império Português em 1557, a reboque da expansão colonial lusitana na Ásia, a cidade converteu-se rapidamente em entreposto comercial e porto seguro para incursões portuguesas na região do Pacífico.
Após um motim liderado por grupos pró-Pequim nos anos 1960, foram postas em andamento negociações com as autoridades portuguesas sobre o futuro do território. Formalmente devolvida à República Popular da China em 1999, Macau é gerida atualmente por uma junta administrativa autônoma, que governará até 2049, quando a região será definitivamente integrada ao sistema administrativo chinês.
A grander maioria da população (94%) é composta por cantoneses, etnia característica do sul da China, mas a presença portuguesa se faz sentir no nome de inúmeras ruas e na boca de setores da sociedade macauense que ainda falam o português, o que, segundo o censo de 2006, equivale a 2,4% da população. A administração da cidade é oficialmente bilíngue e todos os sinais e placas públicas são grafados em cantonês e português.
É justamente esse caráter híbrido e cosmopolita que faz de Macau uma área estratégica para o projeto de expansão dos estudos da língua portuguesa em território chinês. Tal expansão tem uma clara dimensão econômica e geopolítica, ligada a interesses estratégicos chineses na América Latina e, sobretudo, na África lusófona.
A presença chinesa em países como Angola e Moçambique é ostensiva. Nas duas últimas décadas, o volume de investimentos chineses na África cresceu mais de 20 vezes, passando de US$ 10 bilhões em 2000 para US$ 220 bilhões em 2014. Em setembro de 2016, Angola se tornou o maior fornecedor de petróleo para a China, enquanto Moçambique está entre os cinco países com maior concentração de investimentos chineses.
Interesse chinês
Nesse cenário, a China é evidentemente o país com as melhores condições para absorver o possível vácuo a ser deixado por empresas brasileiras na região, após o impacto dos escândalos de corrupção envolvendo empreiteiras como Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez, todas elas com grande volume de investimentos em Angola e Moçambique.
Ano passado, como consequência dos ilícitos expostos pela Operação Lava Jato, o BNDES chegou a congelar financiamentos de pelo menos três projetos em Angola e um projeto em Moçambique, afetando contratos da Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão e Andrade Gutierrez.
O Brasil é, ele mesmo, um foco de interesse chinês. Os investimentos chineses na América Latina cresceram nas últimas décadas de maneira rápida e consistente. Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, substituindo o primado histórico das relações com os Estados Unidos.
É preciso lembrar também que o português é uma língua global. De fato, é a terceira língua que mais cresce no mundo – atrás apenas do espanhol e do inglês. Além disso, embora seja a quarta língua mais falada do mundo em termos absolutos, é a terceira em ambientes de negócios relacionados ao mercado de óleo e gás.
Crescimento populacional
Alguns estudos conduzidos pelas Nações Unidas e publicados em 2016 no Atlas da Língua Portuguesa são reveladores. Embora o Brasil seja o país com mais falantes de português no mundo, as transformações demográficas que têm ocorrido nas últimas décadas tendem a alterar esse cenário.
Estimativas preveem que até o fim do século existam mais falantes de português na África do que no Brasil, sobretudo devido à retração no crescimento populacional brasileiro e à explosão populacional liderada por países como Angola e Moçambique. No conjunto, eles somarão cerca de 266 milhões de habitantes em 2100, ultrapassando o Brasil, com população prevista de 200 milhões.
Logo após a devolução de Macau às autoridades chinesas em 1999, havia temores de que a língua portuguesa desapareceria rapidamente da região e do próprio território chinês, como mostrou a BBC Brasil em 2002. No entanto, a política de investimentos chineses não apenas dissipou essa preocupação como garantiu que o estudo da língua ganhasse fôlego no país inteiro.
“A grande surpresa foi a dimensão e a qualidade do ensino da língua portuguesa na China”, afirmou Roberto Vecchi, presidente da Associação Interacional de Lusitanistas (AIL), rede de estudiosos da língua e da cultura dos países que falam português. A associação se reuniu em Macau entre os dias 23 e 29 de julho para promover um encontro entre pesquisadores de diversas universidades da Europa, Ásia, África e Américas.
A China tem atuado estrategicamente na articulação entre políticas culturais e interesses geopolíticos para afirmar-se cada vez mais como potência global.
E ao investir no ensino da língua portuguesa, Pequim reconhece a importância da língua em contexto global e aponta para oportunidades de projeção internacional através do português que têm sido negligenciadas pelo Brasil.