‘Parece leite, mas não é’: como crise ‘empobreceu’ a fórmula dos produtos lácteos do Brasil
Nos últimos meses, os consumidores brasileiros mais atentos notaram uma mudança importante no Moça, uma das marcas de leite condensado mais conhecidas e utilizadas no país. Junto ao produto tradicional, cuja embalagem é azul, as gôndolas dos supermercados foram inundadas por uma nova versão, na cor marrom.
Na parte inferior do rótulo, é possível entender melhor a diferença entre as opções. Enquanto a caixinha azul traz o leite condensado convencional (integral ou desnatado), a marrom é uma “mistura láctea condensada de leite, soro de leite e amido”.
E esse não foi o único produto lácteo a apresentar uma nova fórmula nos últimos meses: de acordo com especialistas e relatos dos próprios consumidores, houve um aumento na oferta de opções que substituem parte do leite por outros ingredientes, como o soro de leite, o amido, o açúcar, a gordura vegetal e os aditivos químicos, como conservantes e aromatizantes.
Algumas marcas, por exemplo, transformaram o creme de leite em “mistura de creme de leite”. Já o queijo ralado virou “mistura alimentícia com queijo ralado”. O doce de leite, por sua vez, foi substituído pelo “doce de soro de leite sabor doce de leite”. Em alguns mercados, até o leite tradicional compete nas gôndolas com novas bebidas lácteas.
“Do ponto de vista nutricional, isso pode ser danoso”, alerta Rafael Claro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“A estratégia é trocar um alimento in natura por ingredientes mais baratos e com baixa densidade de nutrientes.”
“Ou seja: a pessoa compra um produto que parece leite, mas não é”, resume.
Que fique claro: a venda dessas opções está regulamentada nos órgãos competentes, como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) ou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e, a princípio, não fere nenhuma lei.
O grande problema, de acordo com os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é que vários desses alimentos lácteos “alternativos” têm uma embalagem muito similar à original, trazem no rótulo elementos que remetem ao leite — como vacas, pastos, tonéis e líquidos brancos — e são colocados nas mesmas prateleiras que os produtos tradicionais.
Para completar, nem sempre as novas opções são muito mais baratas — ou a diferença em relação aos itens convencionais é de apenas alguns centavos.
O que está por trás do fenômeno
A pesquisadora Kennya Beatriz Siqueira, da Embrapa Gado de Leite, em Juiz de Fora (MG), explica que as movimentações recentes da indústria dos produtos lácteos têm a ver com a crise financeira, a inflação e a escassez de matéria-prima no mercado.
“Nos últimos dois anos, tivemos um aumento de 62% no custo de produção do leite”, calcula.
A especialista explica que toda a cadeia produtiva sofreu com o aumento dos preços: os custos da ração que alimenta as vacas, da energia elétrica que mantém o funcionamento dos currais e do próprio combustível que transporta esse alimento subiram consideravelmente.
“Por conta disso, muitos produtores se desfizeram de parte do rebanho e venderam as vacas menos produtivas para os abatedouros.”
Isso, por sua vez, significa que há menos leite saindo das fazendas brasileiras.
“Para completar, o meio do ano é o período de entressafra do leite, já que as pastagens não estão boas por causa do clima seco e da temperatura fria”, complementa.
A união desses fatores fez com que o leite (e os produtos lácteos no geral) se transformassem nos “vilões da inflação” durante os últimos meses.
De acordo com o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), o leite longa vida acumula uma alta de 57% no ano.
Outros itens também registraram uma subida considerável. Apenas em julho, houve um aumento de 19% no leite condensado, 17% na manteiga, 16% no queijo e 14% no requeijão.
Hora do plano B
Com menos matéria-prima no mercado e um preço cada vez mais elevado, a estratégia da indústria foi substituir uma parte do leite que ia nas formulações originais dos produtos lácteos.
Uma porção desse ingrediente, então, foi trocada pelo soro do leite, um composto que “sobra” e antigamente era descartado durante a fabricação de queijos.
Para ter ideia, a produção de um quilo de queijo gera cerca de oito litros de soro, em média.
E vale destacar que esse soro, apesar de trazer menos nutrientes, não faz mal à saúde e pode ser consumido.
“O soro, porém, tem uma base sólida muito menor do que o leite. Essencialmente, ele é água, com um teor menor de proteínas e carboidratos. E isso muda a composição do produto final para algo pior do ponto de vista nutricional”, diz Claro.
Porém, muitas vezes essa troca simples de leite por soro de leite não é suficiente para manter o aspecto sensorial daquele alimento — afinal, o soro traz menos proteínas e gorduras que o leite “inteiro”, como você confere na tabela a seguir.
Para garantir que o produto “alternativo” fique mais parecido com o original, as empresas acrescentam em leites condensados, requeijões e bebidas lácteas no geral alguns ingredientes complementares, que dão consistência e sabor, como o amido, a gordura vegetal e o açúcar.
“Falamos aqui de compostos que barateiam o custo daquele alimento”, resume a nutricionista Carolina Grehs, cofundadora do Desrotulando, um aplicativo que analisa e dá notas aos alimentos vendidos nos supermercados de acordo com uma série de critérios relacionados à saúde.
Em alguns casos, a adição desses compostos não é suficiente e as empresas precisam acrescentar outros compostos químicos, como emulsificantes, adoçantes e aromatizantes.
Gato por lebre?
Por um lado, essa estratégia não traz nada de errado do ponto de vista legal e regulatório. “Esses alimentos não são exatamente uma novidade e têm nomes e regras bem definidos na legislação”, esclarece Grehs.
“A indústria está cumprindo o seu papel ao lançar produtos que atendem às demandas da população”, opina Siqueira.
“As empresas lidam com a escassez de matéria-prima, mas tentam oferecer alternativas ao consumidor”, defende a pesquisadora da Embrapa Gado de Leite.
Por outro, os especialistas criticam a falta de clareza na comunicação de muitos desses novos produtos — muitas vezes, a embalagem é tão parecida à original que o consumidor nem percebe que está comprando algo diferente daquilo que esperava.
“Há casos em que as bebidas lácteas são colocadas nas mesmas gôndolas do leite. E o rótulo delas traz um copo com líquido branco e outros elementos gráficos que remetem ao leite de verdade”, observa Grehs.
“Vemos que alguns desses novos lácteos são vendidos por um preço muito parecido ou até mais alto em comparação com as versões anteriores”, complementa.
A BBC News Brasil entrou em contato com a Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite), e a Associação Brasileira de Laticínios (Viva Lácteos) para que elas pudessem se posicionar a respeito de toda discussão, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
Procurada, a Nestlé, responsável pela fabricação do Leite Moça, enviou uma nota dizendo que a versão atualizada do leite condensado é “um novo produto da linha Moça que possui os mesmos ingredientes do Moça Tradicional, porém, em quantidades diferentes, com adição de soro de leite e amido”.
“Trata-se de um produto de alta qualidade, sem gordura vegetal, estabilizantes ou espessantes, e é uma opção no portfólio da marca para consumidores que buscam soluções com menor desembolso, sem abrir mão do resultado e da qualidade Nestlé”, finaliza o texto.
Prejuízos nutricionais e culinários
Além de uma possível confusão na hora da compra, o consumo constante desses produtos gera preocupação entre os especialistas.
“A substituição do leite por outros ingredientes significa que o produto vai ter menos proteínas e vitaminas, o que representa um prejuízo na alimentação”, analisa a nutricionista Laís Amaral, supervisora técnica do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Outro ponto que chama a atenção em alguns desses produtos é o acréscimo de açúcar nas formulações.
“Uma coisa é consumir a lactose, o açúcar natural do leite. Outra muito diferente é o açúcar adicionado de outras fontes, como o xarope de glicose”, compara Grehs.
“Isso nos preocupa, pois o leite é um elemento central na dieta de muitos brasileiros e observamos níveis crescentes de obesidade na nossa população, que está relacionada ao consumo excessivo de alimentos calóricos e ricos em açúcar.”
Segundo a Embrapa, cada brasileiro consome uma média de 166 litros de leite por ano — taxa que aumenta exponencialmente desde os anos 1990.
Além da menor qualidade nutricional de alguns desses lácteos “alternativos”, é preciso prestar atenção na adição dos compostos que terminam com “ante” neles, como os corantes, os emulsificantes, os adoçantes…
“São ingredientes que barateiam a produção, fazem com que aquele alimento seja minimamente comestível e mudam substancialmente a parte sensorial do produto”, explica Amaral. Isso faz com que muitos desses novos lácteos se encaixem na categoria dos ultraprocessados.
Na lista de ingredientes de uma mistura alimentícia de queijo ralado, por exemplo, é possível saber que ele contém amido de milho e/ou amido de mandioca, ricota em pó, queijos ralados, soro de leite em pó, creme de leite, acidulante ácido cítrico, antioxidante lecitina, conservantes sorbato de potássio e ácido sórbico, aroma idêntico ao natural de queijo parmesão e corante artificial amarelo crepúsculo.
Já no queijo ralado tradicional, essa tabela costuma ser bem mais enxuta: o produto é feito geralmente de queijo ralado (leite pasteurizado, fermento, sal e coalho bovino) e conservante ácido sórbico.
De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde em 2014, o consumo de alimentos ultraprocessados, que trazem muitos desses ingredientes de nome complicado e não são encontrados facilmente na despensa ou na geladeira de nossas casas, deve ser evitado sempre que possível.
“Devido a seus ingredientes, alimentos ultraprocessados — como biscoitos recheados, salgadinhos ‘de pacote’, refrigerantes e macarrão ‘instantâneo’ — são nutricionalmente desbalanceados. Por conta de sua formulação e apresentação, tendem a ser consumidos em excesso e a substituir alimentos in natura ou minimamente processados. As formas de produção, distribuição, comercialização e consumo afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente”, aponta o texto.
“A fabricação de alimentos ultraprocessados, feita em geral por indústrias de grande porte, envolve diversas etapas e técnicas de processamento e muitos ingredientes, incluindo sal, açúcar, óleos, gorduras e substâncias de uso exclusivamente industrial”, contextualiza o guia.
Além dos riscos nutricionais, Grehs chama a atenção para outro aspecto relevante do uso dos lácteos alternativos: possíveis alterações na textura e no gosto de pratos típicos e muito populares.
“Algumas misturas lácteas geram problemas em receitas que dependem da gordura para formar a estrutura daquele preparo, como em pudins e brigadeiros.”
De acordo com a especialista, o uso de alguns dos novos produtos nas receitas muda o aspecto sensorial desses doces — o brigadeiro, por exemplo, pode não chegar ao ponto ideal, quando ele começa a se desgrudar do fundo da panela, enquanto o pudim não ganharia aquela consistência típica do quitute.
O que fazer?
Rafael Claro, da UFMG, entende que a solução óbvia é evitar o consumo desses alimentos ultraprocessados e consumir produtos frescos, se possível.
Mas o especialista entende que essa é uma discussão que ultrapassa os limites da nutrição e envolve assistência social e políticas públicas — ainda mais num cenário de crise econômica e inflação em alta. “Nem todo mundo pode comer itens frescos e in natura, porque eles costumam ser mais caros.”
“Muitas pessoas não têm dinheiro para comprar um litro de leite integral ou meio queijo. Daí elas precisam partir para as bebidas lácteas e as versões alternativas.”
“Mas fornecer um alimento ‘porcaria’ barato para os mais pobres não pode ser visto como um caminho para nosso futuro como país”, protesta.
“Também precisamos pensar que grande parte desses produtos lácteos ultraprocessados não são necessários para a alimentação. Se eles não representam uma alternativa para garantir a segurança alimentar, a orientação é que eles não sejam incorporados aos hábitos de consumo”, conclui.
Siqueira, da Embrapa Gado de Leite, entende que a tendência é que a inflação dos lácteos fique mais controlada nos próximos meses.
“A gente espera a importação de matéria-prima e uma melhora nos custos de produção. A expectativa é que tenhamos uma redução nos preços já neste segundo semestre”, projeta.
Do ponto de vista prático, Grehs orienta que os consumidores fiquem atentos ao nome técnico de cada produto, que aparece em letras menores na parte frontal do rótulo — é ali que você vai saber se está diante de um creme de leite ou de uma mistura de creme de leite, por exemplo.
“E mesmo dentro das misturas lácteas, é possível procurar opções melhores e mais saudáveis. Algumas só trazem soro de leite e amido, enquanto outras têm o acréscimo de açúcar e aditivos químicos”, sugere.
Para checar essas diferenças, vale ler a lista de ingredientes que aparece na parte traseira da embalagem. Se itens como “xarope de glicose”, “açúcar” ou “gordura vegetal” aparecem logo de cara, é bom ligar o sinal de alerta.
“Além disso, se a palavra ‘sabor’ está no rótulo, isso significa que há a adição de aromatizantes para reforçar o paladar, como é o caso de opções como o ‘pó para preparo de bebida sabor leite’ ou a ‘bebida láctea sabor morango'”, acrescenta a nutricionista.
Por fim, caso o consumidor se sinta lesado e enganado na hora em que comprou alguns desses compostos lácteos, é possível acionar órgãos de fiscalização.
“Se você achar que comprou gato por lebre, pode fazer denúncias no Procon, no site consumidor.gov.br e no Observatório de Publicidade de Alimentos“, finaliza Amaral.
Por ANDRÉ BIERNATH – BBC NEWS BRASIL