O Tempo entre linhas e retalhos – Por Wilton Emiliano Pinto

Por Wilton Emiliano Pinto *

Meu pai foi, até os cinquenta anos, um homem da terra — um verdadeiro lavrador, desses que sabiam conversar com o chão, decifrar o cheiro do vento e entender a linguagem silenciosa da natureza. Carregava nas mãos calejadas as marcas de uma vida inteira sob o sol, entre enxadas, machados e a esperança plantada a cada manhã. Sabia, antes mesmo da chuva, o momento exato em que a terra iria se abrir em generosidade. Tinha olhos que enxergavam o invisível: a alma das árvores, o murmúrio dos rios, o sussurro do céu anunciando a seca ou a fartura.

Quando nos mudamos de Piracanjuba para Goiânia, em dezembro de 1957, ele trocou o campo pela cidade. Deixou para trás o cheiro da terra molhada e se reinventou, como tantos pais fizeram em nome da sobrevivência. Foi vendedor de bilhetes de loteria, empurrador de carrinho de picolés, plantador de grama nas promissoras terras vermelhas de uma nascente Brasília. Por fim, encontrou alguma estabilidade como motorista no antigo DERGO. Mas, por dentro, a alma permanecia arada, com o mesmo compasso do trabalho árduo e da dignidade silenciosa.

O tempo, porém, com sua marcha firme e inevitável, cobrou seu preço. Já aposentado e com mais de 80 anos, perdeu o direito de dirigir, vencido pela visão que já não acompanhava a força da vontade. Aceitou a nova condição com o silêncio dos fortes, desses que não se queixam, mas sentem. E eu sabia — sim, eu sabia — que, dentro dele, o motor ainda roncava baixinho, em lembranças. Ainda sentia o volante como uma extensão do corpo, e a estrada como o fio condutor da liberdade.

Para quem viveu sempre em movimento, o ócio é armadilha. E ele, que sempre teve um propósito ao acordar, precisou encontrar outro modo de existir. Foi então que começou a fazer tapetes de retalhos. “Isso me ocupa o tempo”, dizia, com um meio sorriso, “e me faz pensar menos no passado, quando eu era forte e acordava com o cantar do galo para ir pra roça.”

Mas eu sabia. Sabia que cada retalho era uma lembrança costurada com delicadeza. Cada linha, uma história não dita. O tapete que surgia sob suas mãos não era apenas um artesanato: era uma espécie de mapa secreto, onde ele voltava ao tempo da juventude, das mãos firmes, da enxada certeira, do galo madrugador. Era um modo de reviver, em silêncio, aquilo que jamais se esquece.

Anos depois, vi uma cena que me tocou profundamente. Em um consultório médico, algumas senhoras, já com os cabelos prateados, transformavam novelos de linhas em mantas, em blusas, em afeto. Entrelaçavam mais que fios — costuravam saudades, acalmavam os fantasmas da solidão, preenchiam o vazio das horas com sentido e beleza.

Recentemente, em outro consultório, vi algo curioso. Uma senhora assistia a um vídeo de tricô no celular. Não era um tutorial, não ensinava nada. Apenas mostrava mãos que tricotavam. E ela assistia com atenção, como quem mata a saudade de algo que vive no corpo, mesmo quando as mãos já não acompanham o desejo. Fiquei ali, observando, e me perguntei: será que o gesto de ver é, agora, uma nova forma de fazer? Será que há uma memória afetiva tão profunda no tricô, que só de assistir já se toca o coração?

O mundo muda. As ferramentas mudam. Meu pai trocou a enxada e o volante por agulhas improvisadas e retalhos coloridos. E agora, o tricô, que antes era feito ao calor de uma roda de conversa, pulsa no silêncio frio das telas. Mas talvez, no fundo, nada tenha mudado tanto assim.

Ainda tecemos. Uns com as mãos, outros com os olhos, outros apenas com as lembranças. Ainda buscamos dar forma ao tempo que passa — entrelaçando dias, costurando ausências, bordando esperanças.

Afinal, todos nós estamos criando algo: uma tapeçaria invisível feita de escolhas, afetos e saudades. Tecemos a vida como podemos — com linhas, com retalhos, com pixels ou com lágrimas contidas. O que importa é continuar. Porque, no fim, é isso que somos: fios entrelaçados no grande tecido do tempo.

* Wilton Emiliano Pinto é Contabilista, Funcionário Público aposentado e gosta de uma boa prosa.

Comentários

0 Comentários

DÊ A SUA OPINIÃO!