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O Brasil pelos olhos de nove crianças refugiadas que vivem em São Paulo

Quando viviam em seus países – Haiti, Síria, Arábia Saudita e Congo -, o cotidiano deles era bem diferente. Mas hoje, esses meninos e meninas que são refugiados em São Paulo têm muito em comum: comem arroz e feijão, gostam da liberdade que têm no Brasil e jogam futebol (ou queimada) na escola.

“No Brasil é melhor porque não tem guerra”, resume a síria Ritag Youssef, de 8 anos, refugiada há quase três anos. Ela foi uma desses novos brasileiros que conversaram com a reportagem da BBC Brasil em bairros de São Paulo, onde vivem.

Eles fazem parte de uma estatística que não para de crescer. Segundo a ONU, em 2015, o número de refugiados no mundo ultrapassou os 60 milhões, um recorde histórico desde a Segunda Guerra Mundial. Desse número, quase metade são crianças – cerca de 28 milhões conforme dados do Unicef, o fundo da ONU para educação e infância.

No Brasil, o Comitê Nacional para Refugiados afirma que o número de solicitações de refúgio humanitário cresceu quase 3.000% no intervalo entre 2010 e 2015.

Todos enfrentam ou enfrentaram vários novos desafios, como a barreira da língua, a adaptação à nova cultura e a falta de acesso a uma política educacional que atenda melhor às crianças refugiadas.

Mas muitas vezes elas conseguem se adaptar mais facilmente e aprender português de modo mais rápido que os pais. Adaptam-se também à culinária local, seja ao arroz feijão ou à pizza doce.

“As pessoas lá eram más”

Os irmãos Zaeem, de 11 anos, e Assad, 12 anos, e as irmãs Warda, 11 anos, e Sheza, 15 anos, viviam bem com os pais em Riad, capital da Arábia Saudita, quando a perseguição religiosa mudou suas vidas. A família cristã de origem paquistanesa começou a ser ameaçada por extremistas após o envolvimento do filho mais velho, Shanzee, 18, com uma menina muçulmana. Lá, esse tipo de atitude pode ser penalizada com a morte por grupos radicais locais.

Zaeem, Warda e Assad
Os irmãos Zaeem, Warda e Assad vieram para o Brasil após a família ser perseguida na Arábia Saudita

Para sobreviver, a única solução encontrada pelo pai Ijaz Masih foi se mudar para o Brasil, o único país que lhes ofereceu um visto. Hoje eles vivem em um abrigo – uma antiga escola primária, sob auxílio da Igreja Presbiteriana no bairro da Penha, em São Paulo.

Vivendo há pouco mais de 2 meses no Brasil, ainda se comunicando apenas em inglês, eles ficam sérios quando falam sobre o que viveram em Riad, capital da Arábia Saudita. “As pessoas de lá eram más”, diz o pequeno Zaeem. A irmã mais velha, Sheza, afirma que é um alívio estar no Brasil: “Começaram a nos tratar de modo diferente quando descobriram que éramos cristãos.”

Warda, fã de futebol, conta que lá só podia jogar dentro de casa, escondida. Caminhar pela rua, só era possível em horários restritos. Agora, joga futebol na velha quadra atrás de casa com os irmãos a hora que quer. “Lá, toda liberdade era só para eles (os meninos)”, conta a garota. As duas, Warda e Sheza, fizeram questão de deixar pelo caminho as roupas muçulmanas, como aa abayas, a túnica preta e longa, e os lenços que tinham que usar na cabeça.

Irmãos brincam de Pokémon:
“A gente não entende nada das aulas mas amamos estar aqui!”

Os quatro já frequentam o colégio público do bairro mas, sem nenhum auxílio especial por serem estrangeiros. Quem os ajuda a superar a barreira da língua são os colegas de classe já que apenas um professor fala inglês. Zaeem, o mais falante, exclama “a gente não entende nada das aulas mas amamos estar aqui!”. Foi na escola que conheceram o arroz e feijão, que não gostaram muito. “Nós gostamos mesmo é de comer pizza doce, coisa que não tinha lá”, completa Assad.

Ao descobrirem que seria Dia das Crianças no Brasil, o pedido oficial ditado pela irmã mais velha é por boas notas e um trabalho para os pais. No extra-oficial, Zaeem quer uma bicicleta, Assad, um skate e Warda, claro, uma bola de futebol.

Zaeem, Warda, Assad e Sheza
Zaeem, Warda, Assad e Sheza: querem ficar no Brasil

“A Maria não encontrou João por causa da bruxa”

Jessy, de 6 anos e Winner, 4, chegaram no Brasil no colo da mãe escondidos no porão de um navio vindos do Congo. A mãe, a congolesa Sylvie Mutiene, 34 anos, teve que fugir deixando a filha mais velha e o marido para trás por causa da perseguição política.

“Você faz loucuras para salvar a sua vida e de seus filhos, eu protegi os que tinha a mão” Para os filhos, ela dizia que o pai tinha ido viajar. Os dois foram se reencontrar ao acaso no Brasil mais de um ano depois e hoje moram em um pequeno apartamento na zona leste da capital paulista.

Jessy e Winner, que vieram do Congo
Jessy e Winner chegaram no Brasil no colo da mãe escondidos no porão de um navio vindos do Congo.

Winner se estica e nas pontas dos pés chega perto do gravador para dar sua versão da vida de seus pais. “Quero contar uma história da menina chamada Maria que procurava pelo João. Ela não encontrou o João porque a bruxa má jogou ele na prisão”.

A versão de Jessy é mais direta: “meu pai foi perseguido pela polícia. Aí ele se escondeu na nossa casa e os policiais bagunçaram tudo e não o acharam porque ele estava num porão”.

A menina, que está cursando primeiro ano fundamental em uma escola pública do bairro, já fala bem português e declara orgulhosa que gosta “de matemática e língua portuguesa” e, confiante, acrescenta: “Em todas as lições eu tiro bom, ok ou parabéns. Nunca tiro nota ruim. Eu faço tudo certinho”.

Jessy quer voltar para o Congo para ver a avó e a irmã. No ranking dos desejos infantis, porém, os pequenos refugiados vão nos básicos: Jessy quer uma boneca; o pequeno Winner, um videogame.

O congolês Winner
O congolês Winner queria um videogame de Dia das Crianças

“Aqui não tem guerra”

Abraçada em um cachorrinho de pelúcia branco que foi presente do pai, a Ritag Youssef, de 8 anos, define porque é melhor viver no Brasil: “Aqui não tem guerra”. Ela e a irmã Rahab , de 11 anos, estão há quase três anos no país e hoje dividem um beliche num quarto em um condomínio na Vila Carrão, zona leste de São Paulo. Vindas da Síria fugindo da guerra com seus pais elas estão bem adaptadas aos costumes brasileiros.

A escolha pelo bairro se deu por causa da localização da escola islâmica na qual os pais fazem questão que as meninas estudem. Lá elas mantêm o aprendizado da cultura árabe junto com os costumes brasileiros. As notas em educação física são as mais altas, “eu amo handball e queimada, muito muito”, diz Rahab. Ambas adoram jogar futebol mas ainda não escolheram nenhum time brasileiro para torcer.

Irmãs Sírias Rahab Youssef e Ritag brincam em sua casa no bairro do Carrão
Irmãs Sírias Rahab Youssef e Ritag brincam em sua casa no bairro do Carrão

Uma coisa que chamou atenção das meninas na apostila do colégio foram as fotos dos índios: “Como são diferentes, com aquelas tintas que passam no rosto”, diz Ritag passando os dedos pela bochecha Da comida brasileira o que mais adoram é o feijão e arroz, e o maracujá, uma fruta que não existia na Síria.

Para esse dia 12 elas não pediram nenhum presente ainda. Rahab diz que se pudesse pediria um celular ou um tablet. Ritag quer mais uma Barbie para sua coleção. Ela também gostaria de viajar com a família, “eu adoro a França, a Turquia e a Rússia”.

Os pais acreditam que a decisão de vir para o Brasil foi acertada porque aqui podem praticar sua religião livremente, “eu posso usar o hijab – tipo de véu islâmico – tranquilamente e isso seria um problema em alguns lugares da Europa”, explica a mãe. A filha mais velha, quando fizer 15 anos, deverá começar a utilizar o hijab também.

O pai, que na Síria era técnico em um laboratório, agora passa a semana fora trabalhando na feira da madrugada do Brás e só encontra as meninas nos finais de semana. O maior desejo de ambos é que a guerra acabe na Síria para poder voltar para lá. As meninas já adaptadas ao novo país não têm o mesmo desejo, querem é ficar no Brasil.

“Quero ser médica e morar um pouco no Brasil e um pouco no Haiti”

Em uma igreja no bairro da Mooca encontramos Rachel Betty Edmond, de 9 anos, acompanhando seu pai. A menina é de família haitiana, mas nasceu na República Dominicana, e veio com a mãe em 2011 para o Brasil. O pai tinha chegado um ano antes depois que o terremoto devastou o país. “Ela falava espanhol e criolo quando chegou aqui, agora acho que Rachel nem lembra”, fala o pai Edmond Jean Camille, 47 anos. De pose altiva e um modo delicado de se expressar Rachel fala perfeitamente português que aprendeu com os colegas no colégio desde os 7 anos.

Rachel Betty Edmond
Rachel Betty Edmond voltando da missa na igreja haitiana da Mooca

“Gosto de brincar e de estudar, quando não tenho lição de casa eu brinco de tabuada, a matéria que mais gosto é matemática”. A educação física também é uma paixão, Rachel afirma que é rápida e adora apostar corrida com os colegas. “Só tem um amigo que ganha de mim”. Da comida ela adora o arroz com feijão e de brigadeiro. Religiosa ela que gosta de música gospel brasileira.

Sobre o dia das crianças diz que ainda não pediu nada, mas se pedisse seria uma boneca. “Não tenho nenhuma”, diz. “Eu gosto muito de passear no parque também, mas minha mãe nunca tem tempo, mas quando é dia de alguma coisa, normalmente nos levam para algum passeio aqui na igreja”.

De seus desejos para o futuro, depois de alguns segundos de silêncio, ela levanta o rosto e diz: “quero ser médica e morar um pouco no Brasil e um pouco no Haiti”. “Isso é Deus que vai decidir”, diz o pai, olhando para ela.

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