Nômades digitais e aluguel em dólar: por que moradores estão sendo expulsos de seus bairros na América Latina
Basta caminhar pelos bairros de Medellín, na Colômbia, para se deparar com dizeres nos muros: “Medellín não está à venda. Parem a gentrificação”.
O fenômeno é explicado pelo alto número de aluguéis de curta temporada, principalmente na plataforma Airbnb, e pela chegada em peso dos nômades digitais, segundo especialistas.
E o cenário é comum em vários outros países da América Latina, onde moradores relatam o aumento no custo de vida.
Segundo a plataforma AllTheRooms, que cataloga dados de habitações e aluguéis de temporada em todo mundo, houve um aumento expressivo de estadias na modalidade Airbnb na América Latina nos últimos anos.
Na América do Sul, o Brasil aparece em primeiro lugar no número de diárias contratadas, seguido por Colômbia e Argentina. Na América Central, o México ocupa a primeira posição, seguido por Costa Rica e Guatemala.
“A América Latina continua a desempenhar um papel significativo no mercado de aluguel de curto prazo, com forte crescimento ano a ano em todos os países da América Latina, tanto em receita quanto em oferta, em 2022 e até em 2023”, diz Joseph DiTomaso, CEO da plataforma.
“Brasil e México continuam dominando o mercado, representando cerca de 72% da receita total de aluguel de curto prazo na América Latina”, acrescenta.
Um estudo realizado pelo governo da cidade do México mostrou que o número de habitações temporárias na cidade, na categoria Airbnb, triplicou entre os anos de 2000 e 2020, passando de 22.122 a 71.780 unidades.
A pesquisa mostrou ainda que a cidade do México expulsa anualmente 20 mil famílias de renda mais baixa por falta de opção de uma moradia acessível.
Nômades digitais
Mesmo com o fim da pandemia de covid-19, muitos estrangeiros continuam trabalhando remotamente ou investiram para valer no modo de vida nômade.
Muitos deles são remunerados em moeda valorizada e procuram cidades mais baratas, com qualidade de vida para morar ou passar longas temporadas, de acordo com Diana Quintas, sócia da Fragomen no Brasil, empresa especializada em imigração e líder na área de mobilidade internacional de pessoas físicas e empresas.
“Falando de nomadismo digital na América Latina, nossa região é escolhida por muitos profissionais porque juntamos qualidade de vida a um custo atrativo para os mais bem colocados no mercado”, diz a especialista.
Porém, isso afeta diretamente no aumento dos aluguéis para quem reside naquele lugar, aponta Isadora Guerreiro, coordenadora do Lab Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Esse processo, conhecido como gentrificação, se dá pela transformação da população local, que é substituída por outros perfis de renda mais alta, contribuindo para a supervalorização de um bairro ou cidade e, consequentemente, para a expulsão de antigos moradores.
Segundo Guerreiro, esse movimento aprofunda a desigualdade urbana.
“O que estamos vivendo na América Latina é que esses proprietários corporativos, que são empresas ou fundos de investimento internacional, passam a ser donos de unidades (…) e passam a definir (preços) baseado no setor internacional. (…) É totalmente descolado de quanto as pessoas podem pagar. Isso vai redefinindo o bairro”, diz Guerreiro.
Atrelado a isso, a América Latina também acompanha a onda de inflação global, intensificando o aumento dos aluguéis.
Segundo dados do site de locação Quinto Andar, de maio de 2022 a maio de 2023, o custo médio do aluguel de um apartamento subiu 136% em Buenos Aires (Argentina); 13% na Cidade do México (México); 11% em São Paulo (Brasil), 11% em Quito (Equador), 11% na Cidade do Panamá (Panamá) e 6% em Lima (Peru).
Aluguéis altos e em dólar
A gerente de comunicação brasileira Daniela De Caprio vive na cidade do México há três anos e meio. Ela se mudou para o país devido a uma oferta de trabalho.
Mesmo o México tendo uma moeda desvalorizada frente ao real, segundo ela, alugar ou comprar um imóvel no país é muito caro.
Desde que chegou ao país, De Caprio, de 33 anos, vem acompanhando o aumento nos preços dos aluguéis e mudou de bairro três vezes.
Ela conta que, em alguns bairros, o aluguel de um apartamento pequeno sai por US$ 5 mil (R$ 24,5 mil).
“Eu sabia que era caro, mas não tanto assim. Tem muitas empresas que vendem apartamentos já em dólar”, diz.
Maria Siqueira, dona da Imobiliária Ousía na Cidade do México, aponta que o aumento está ligado à chegada de nômades digitais e expatriados.
Em outubro de 2022, o governo da Cidade do México anunciou uma parceria com o Airbnb e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para promover a cidade com um centro global para trabalhadores remotos e para se tornar a capital do turismo criativo.
Segundo Vinicius Oike, economista do QuintoAndar, o fenômeno no México é até mais prevalente do que no restante da América Latina.
“Esse processo é um fenômeno localizado, dentro de certos bairros e de certas cidades onde esse público se foca. Isso acontece até por questão geográfica de estar perto dos Estados Unidos, que adotou bastante o trabalho 100% remoto, mesmo depois da pandemia”, diz o especialista.
Siqueira confirma a dolarização nos aluguéis e aumento na procura dos imóveis por estrangeiros.
“Para muitos proprietários, é conveniente cobrar em dólar. Eles aceitam a transferência já que tem muita burocracia para abrir uma conta. Às vezes, muitos vêm para cá temporariamente. O México é um dos países mais econômicos e tem uma boa qualidade de vida”, diz.
Siqueira acrescenta que muitos contratos são de um ano, mas acabam tendo flexibilidade caso a pessoa pague a multa e queira sair antes.
No caso dos nômades digitais, ela diz que esse público não tem muitas exigências, são jovens e prolongam a estadia por mais tempo.
“Alguns vêm para uma temporada e acabam ficando mais. Não querem gastar com um aluguel caro, querem viajar. Não importa se o edifício está caindo aos pedaços.”
Essa onda de trabalhadores remotos internacionais também foi sentida por pela brasileira Mayara Pinheiro, de 36 anos, consultora de operações em negócios na Cidade do México.
Morando no local há dois anos e meio, ela diz que os preços de vários produtos e serviços começaram a mudar drasticamente.
“Os ‘gringos’ estão se mudando para cá podendo pagar aluguéis que os locais, que ganham em moeda local, não podem. Daí, o aumento atinge não só os mexicanos, mas os latinos que já vivem aqui, como eu, que ganha em peso”, opina.
Ela conta que tem uma amiga mexicana que precisou deixar o apartamento atual e ir para um bairro mais distante, devido a um aumento de 20% no valor do aluguel.
O problema também foi percebido pelo executivo de vendas de tecnologia Roberto Bucio, de 33 anos, que é mexicano e morou na capital a vida inteira.
“Depois da pandemia houve várias mudanças. Algumas pessoas voltaram a morar com os pais ou saíram para cidades mais afastadas que ficam a uma hora de carro daqui. Os preços dos imóveis aumentaram muito”, ressalta.
Para ele, o modo de trabalho remoto, que começou em muitas empresas e segue até hoje, possibilitou a vinda dos nômades para o país.
“Essa flexibilidade de não ir ao escritório tem uma conexão direta com o aumento do custo de vida na cidade nos últimos três anos.”
Airbnbs e bairros saturados
Considerada a cidade mais rica da Colômbia, Medellín vive um boom de estadias temporárias, muitas vezes cobradas em dólar.
Segundo a plataforma AllTheRooms, entre 2020 e 2021, as estadias feitas por Airbnb cresceram 119% na cidade.
Já em 2023, houve um crescimento de quase 40%, na comparação com o mesmo período do ano passado.
Bairros como El Poblado e Laureles são os mais procurados por quem deseja ficar por mais tempo.
Também são muito visados por turistas que visitam a cidade e buscam ficar perto do metrô, bares, cafés e restaurantes.
Porém, a alta demanda por essas regiões já influencia no custo e estilo de vida dos moradores.
A colombiana Diana Yanes, de 33 anos, vive em Medellín há 13 anos, e precisou sair do seu apartamento antigo devido ao aumento dos preços.
A alternativa foi alugar apenas um quarto e dividir a casa com uma amiga.
Ela diz que não conseguiria pagar por um imóvel se morasse sozinha. Mesmo sendo compartilhado, o espaço é simples e muito caro.
Pelo fenômeno que ocorre na cidade, ela diz acreditar que a vinda de estrangeiros contribuiu para o aumento no valor dos aluguéis.
“Os proprietários preferem alugar para estrangeiro para obter maior rentabilidade e não para pessoas locais que podem pagar um aluguel mensal mais baixo”, diz.
Marisol Pérez Hernández, de 43 anos, trabalha com uma pousada há quase três anos e ressalta que tudo mudou na cidade desde o aumento dos turistas estrangeiros e trabalhadores remotos.
Embora tenha fortalecido a economia na região, principalmente no pós-pandemia, isso torna certos bairros proibitivos de morar, diz ela.
“El Poblado, por exemplo, é impossível, são só turistas. Os aluguéis mensais são extremamente caros nessa região. Em Laureles, já está começando a chegar neste patamar.”
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Por Priscila Carvalho
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De Medellín (Colômbia) para a BBC News Brasil