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‘Não vou falar com preto’: executivo negro relata racismo no mundo corporativo brasileiro

Cesar Nascimento pode vestir paletós caros, óculos de grife, sapatos italianos. Frequentar restaurantes sofisticados de São Paulo. Ter funcionários sob suas ordens, ir a reuniões com parceiros internacionais, falar inglês. Cesar Nascimento pode fazer tudo isso, mas diz que não será tratado como igual entre seus pares. Ele não pode mudar a cor de sua pele. É um executivo negro.

Como tal, Nascimento, 63 anos, muitos deles passados em multinacionais como Microsoft e a agência de publicidade J. Walter Thompson, sempre precisou provar a seus clientes que era, sim, o diretor financeiro – e não um assistente. À BBC Brasil, disse que o preconceito também o atingiu quando abriu sua consultoria, nos anos 1990. Mas aí descobriu como o racismo poderia ajudá-lo: aproveitava a estranheza causada em seus clientes para fechar negócio.

“Usei o racismo como mola propulsora. Já tinha passado por experiências de chegar em algumas companhias me identificando como o Cesar Nascimento, sócio da empresa X, e me deixarem na recepção. Eu não batia com o estereótipo do empresário. Deixaram de me atender por causa disso. Porque alguém avisava, as pessoas chegavam (na sala de espera), (me) olhavam…e eu não passava.”

Sobrinho de Abdias Nascimento – poeta, professor e um dos maiores expoentes da cultura negra no Brasil -, o paulistano diz que a questão racial sempre foi debatida em sua família, descendente de negros escravizados. Apesar da distância do tio, exilado durante a ditadura militar, ele também carregou o tema ao longo da vida. Em 1999, foi um dos fundadores da Integrare, associação que liga micro e pequenas empresas de negros, pessoas com deficiência e descendentes indígenas a grandes corporações. Recentemente, contou sua trajetória em Executivos Negros, livro do antropólogo Pedro Jaime publicado neste ano.

Leia a seguir trechos de seu depoimento à BBC.

Empresário ou assistente

“Quem não sofre racismo ou discriminação não entende exatamente. Hoje o movimento feminista conseguiu expandir esse conceito, mas não é a mesma coisa. O que esses grupos sofreram nunca os tirou completamente a possibilidade de desenvolvimento econômico. Conosco, negros, sempre fomos tolhidos em dois aspectos: educação e mercado de trabalho.

A gente não tinha credibilidade ou não era aceito enquanto empresário por sermos negros. Passei situações (complicadas) como um profissional de experiência que monta uma empresa, mas perde os sobrenomes importantes da carreira. Antes, era o Cesar da (auditoria) PriceWaterhouseCoopers, o Cesar da Thompson, o Cesar da Microsoft. São sobrenomes importantíssimos. Quando passei a ser o Cesar da minha empresa…vinha a pergunta: ‘quem?’. Tudo que aprendi enquanto profissional foi esquecido.

A construção da minha empresa foi até engraçada. Usei o racismo como mola propulsora. Já tinha passado por experiências de chegar em algumas companhias me identificando como o Cesar Nascimento, sócio da empresa X, e me deixarem na recepção, não me atenderem. Eu não batia com o estereótipo do empresário, do executivo. Deixaram de me atender por causa disso. Porque alguém avisava, as pessoas chegavam (na sala de espera), (me) olhavam… e eu não passava.

Aperto de mãos
Nascimento diz que usou o racismo como ‘mola propulsora’ do seu negócio – Direito de imagem GETTY IMAGES

Comecei a crescer por causa de empresas estrangeiras vindo para o Brasil. Elas acabavam me contratando sem saber o que eu era, gostavam do meu serviço e irradiavam isso. Caía a questão racial, mesmo porque para eles não fazia diferença, eu era só mais um brasileiro.

Depois, graças a um ex-colega, tive entrada grande num grupo da área de alimentação, o que me permitiu buscar uma pessoa para ajudar na parte comercial. Aí comecei a usar (o racismo a meu favor).

Ele era o típico ítalo-descendente, então tinha as portas abertas. Havia situações de entrarmos (nas empresas) e todas as atenções iniciais ao ‘grande executivo que vem nos visitar’ irem para ele. E percebia que me colocavam como o assistente ou coisa assim. Deixava a coisa correr. Aí quando eu tomava as rédeas (da negociação) – ‘ah! ele que toma a decisão’ -, notava o embaraço das pessoas. Essa era a hora de fechar o contrato porque elas estavam fragilizadas e tinham medo de dizer não, para não serem acusadas de racismo. É um mecanismo interessante.

Sempre fui pragmático nos meus objetivos. Quais eram? Fechar contrato, fazer minha empresa crescer, pagar os funcionários e tirar algum para mim. Sendo uma coisa honesta, não estou preocupado.

Se a sociedade tem esse tipo de mecanismo, por que não posso usar? E deu certo, criei uma carteira respeitável de clientes.

Entrevistas de dois minutos ou duas horas

Só teve uma pessoa, em entrevistas para cargos executivos, que me perguntou sobre questão racial. Só uma. Adivinha a origem dessa pessoa? Judia. Porque ele sofreu na pele. A pergunta que ele fez foi como eu iria reagir, sendo um dos principais executivos da construtora dele, a um mercado racista. Foi uma surpresa, porque foi o primeiro que me perguntou sem tergiversar.

Acho que (as pessoas) não fazem essas perguntas por medo. Costumo dizer que o Brasil nunca vai resolver o problema racial até admitir que é um país racista. Você não cura ninguém que tem pneumonia se ele não admitir a doença. O Brasil é isso. O Brasil tem 60% da população de negros e não admite ser um país negro. É triste. E toda vez que você toca no tema é ‘ah, mas tenho um amigo negro’, ‘ah, mas jogo futebol com um negro’.

Homem negro estendendo mão para cumprimentar
Entrevistas de emprego nunca tinham duração normal, diz empresário – Direito de imagem GETTY IMAGES

Admitir não é uma fraqueza, pelo contrário. Você só admite determinadas falhas e deficiências quando está maduro. Admito ter um certo preconceito contra mulher, contra gays, e estou tentando trabalhar isso dentro de mim. Para o Brasil, a falta de admissão de que o país é racista e precisa adotar medidas educacionais não resolve o problema.

No caso das entrevistas (de emprego), eram dois extremos: a entrevista extremamente curta ou a entrevista muito longa, nunca a normal. Lembro de uma entrevista para uma posição executiva. Eu já era executivo e um headhunter me procurou, provavelmente por recomendação de alguém. Pediu meu currículo e eu mandei. Quando cheguei na entrevista, o cara olhou para minha cara, levou um susto, e a conversa não durou dois minutos. Não esperava que para aquela posição de diretor financeiro viesse um negro. Fez uma entrevista rápida e nunca mais voltou a fazer contato.

Também tem (a entrevista longa), quando o pessoal quer saber até o último segundo o quão capaz você pode ser.

Racismo no restaurante

Sinto que houve uma mudança do preconceito, mesmo porque nós da primeira geração de executivos negros – que não necessariamente é primeira, porque houve alguns antes – ajudamos a existir a possibilidade de um negro executivo, de um negro empresário. Então passou a se tornar mais comum.

Isso facilita. Mesmo os que são racistas declarados sabem que podemos existir. Então eles vão procurar, já que racismo hoje é crime, um meio de não te afrontar. Eles vão achar uma forma de te receber e, dentro dos cânones normais, te dizer não. Antes era possível você escutar absurdos como ‘eu não vou falar com preto’.

Nunca ouvi, mas um dos meus chefes ouviu sobre mim de um cliente. Estava tendo dificuldades de conseguir as informações que eu precisava com uma determinada pessoa. Era um cliente bem grande por sinal, uma empresa de origem francesa, o que me chocou um pouco.

Comuniquei o chefe da equipe de que não conseguia as informações. Ele achou estranho, foi lá e o cara falou que não ia ‘conversar com aquele moleque, que por cima de tudo era preto’. Meu chefe ficou completamente embaraçado, falou com o diretor. O cara teve que me engolir.

Isso te frustra. Você começa a se questionar. O que tem de errado? Será que é apenas medo de se inferiorizar ante alguém mais preparado que você? Isso sempre me afetava.

Homem negro digitando em notebook
Quando trabalhava em auditoria, um cliente se recusou a falar com Cesar por ele ser negro – Direito de imagem GETTY IMAGES

(Hoje existem) essas sutilezas. Você nota piadas às costas, risinhos, caras irônicas. Estou num casamento inter-racial. Minha mulher, nascida no Brasil, é filha de portugueses. Você imagina, nos casamos em 1978, como é que era.

(Hoje percebo o preconceito) quando estou com minha mulher, às vezes em algum restaurante mais badalado, em algum lugar mais exclusivo.

Tem uma cena que não é tão antiga. Estávamos num evento importante e calhou de estarmos com vários executivos e empresários negros norte-americanos. Depois do evento, decidimos ir a um famoso restaurante de São Paulo. Chegou aquele bando de negros num restaurante chiquérrimo, todos extremamente bem vestidos.

Causou um certo estranhamento porque o grupo não era pequeno, devíamos estar em umas quinze pessoas. No começo ficou aquele (clima) ‘será que eles erraram de botequim?’. Mas fomos atendidos respeitosamente.

É engraçado porque, quando você está falando inglês, o tratamento é diferente. Como falo inglês fluentemente acontece que, se estou com um gringo, quando entramos num restaurante é ‘uau, tem um americano aqui’. Agora, se entro no mesmo restaurante sozinho, não importa que eu esteja usando a melhor roupa, fica aquela interrogação ‘será que ele tem dinheiro para estar aqui?’.

Homem em restauranteNascimento diz que ainda é observado com curiosidade quando vai a um restaurante caro – Direito de imagem GETTY IMAGES

Você nota a curiosidade nas pessoas. Quando você está falando em inglês ou espanhol, é outra categoria. Agora, quando, de repente, você vira para o maître e fala em português, a mesa ao lado solta aquela interrogação: ‘Quem é o famoso que está aí? Será que joga futebol? É artista?’. E ainda tem esse estereótipo.

Tenho mania de chapéu e, no verão, (uso) chapeuzinho de malandro. Já fui parado por pessoas que disseram ‘conheço o senhor! O senhor toca em tal grupo? É compositor? Já te vi na televisão’. É engraçado…

Fiz uma observação (ao longo dos anos): meus amigos ricos de verdade nunca tiveram problema comigo ou com minha família, porque eles não têm mais nada para provar para ninguém. Agora, a classe média ascendente é discriminatória, porque ela não quer ser mal vista por ter um amigo negro ou ir a um restaurante onde tem negro. O rico mesmo não está nem aí, você não é ameaça para ele.”