‘Não toleramos mais’
Por que velhas piadas estão inflamando debate sobre racismo entre descendentes de asiáticos no Brasil
Quando tinha onze anos, o cineasta Leonardo Hwan voltava da escola com um amigo em São Paulo, quando um homem de cerca de trinta anos se aproximou, deu um susto nos garotos e gritou que eles deveriam “voltar para o país deles”.
“Nunca esqueci. Fiquei muito assustado”, diz Leonardo, 27, que é brasileiro e descendente de tawaineses. Hoje ele conta essa história para explicar porque fazer a piada do “pastel de flango” ou gritar “abre o olho, japonês” para descendentes de asiáticos é ofensivo. E ele tem que explicar diversas vezes.
“É racista, é xenófobo. Não é ‘apenas uma piada’. Você está fazendo o mesmo que o cara: está dizendo que a pessoa não pertence, que ela é estrangeira, que não é bem-vinda”, diz Leonardo.
Ele critica uma postagem do prefeito de São Paulo, João Doria, que escreveu a legenda “acelela” em vez de “acelera” (seu slogan) em uma foto durante uma visita à China, na semana passada.
“Quando você diz ‘acelela’, está tirando sarro não dos chineses de lá, mas dos imigrantes daqui, para quem a questão da língua e da adaptação é uma dificuldade real, e para descendentes que lutam há anos para serem aceitos”, afirma Leonardo.
Procurada, a Prefeitura de São Paulo não respondeu até a publicação desta reportagem.
“De uns tempos para cá as pessoas estão menos propensas a aguentarem certas ofensas, piadas e estereótipos. Não toleramos mais”, diz Rodrygo Tanaka, que é descendente de japoneses.
Rodrygo e Leonardo fazem parte de uma geração de filhos e netos de imigrantes de países do leste asiático que estão criando grupos para discutir identidade e discriminação.
Leonardo criou com esse objetivo o canal do YouTube Yo Ban Boo, com a atriz Beatriz Diaféria e o empresário Kiko Morente.
A estudante de ciências sociais Gabriela Shimabuko criou a página Perigo Amarelo há quase dois anos. Ela diz que a aceitação no ocidente sempre foi um processo de negociação.
“Muitas vezes, o custo social de reagir à discriminação acaba sendo muito alto. Enquanto você acata que é só uma piada e finge que tá tudo bem, você faz parte da branquitude. Mas dentro de um espaço que é bem definido —se sair dele, você incomoda”, afirma ela, que é descendente de imigrantes de Okinawa (província do Japão que possui uma cultura própria).
Luta coletiva
Para Rodrygo, que criou o Asiáticos pela Diversidade em 2015, a discussão sobre identidade asiática aumentou em paralelo com o fortalecimento de outras lutas de minorias.
Sua página fala sobre como é ser descendente de asiáticos dentro da comunidade LGBT.
Já a plataforma Lótus, criada um ano depois, faz uma intersecção entre militância asiática e feminismo.
O feminismo de mulheres asiáticas lida com problemas específicos, como a fetichização: a imposição de estereótipos que hiperssexualizam a mulher em torno da ideia de que ela é exótica e submissa. Assim, o racismo se soma ao machismo na agressão à mulheres não-brancas.
“Os impactos dessas violências vão desde a perda de identidade, perda de autoestima, falta de noção sobre seu próprio valor, e demais traumas provindos de abusos físicos, mentais e emocionais”, afirma Caroline Rica Lee, da Lótus.
“A fetichização é resultado de um processo histórico. Estupros e dominação das mulheres sempre foram armas de guerra e dominação. Durante as guerras do Vietnã e da Coreia, os americanos ocuparam esses países e amplificaram a proliferam dessa ideia”, diz Gabriela, do Perigo Amarelo.
Segundo o educador e mestrando em história Fábio Ando Filho, um dos criadores do blog Outra Coluna, que existe há quase dois anos, nesse processo de dominação, enquanto a mulher era fetichizada, o homem asiático sofria um processo de emasculação.
Ele é retratado como fraco e assexuado e portanto deve ser dominado pela virilidade do homem branco. “Isso gera desde a perda da autoestima até atitudes excessivamente agressivas e machistas para compensar — e aí quem sofre são as mulheres”, diz Fábio.
Representatividade
Sabrina Kim, do canal Kores do Brasil, diz que o que a motivou a criar vídeos sobre o assunto foi ver que os filhos pequenos — de sete e cinco anos — estavam passando pelos mesmos problemas que ela tinha quando criança. “Discriminação contra coreano é sempre tratada como piada. Mas para quem passa por isso é um sofrimento real. Eu tinha vergonha de ser diferente, vergonha da língua. Ouvi coisas horríveis quando criança”, afirma.
A escritora e ilustradora Janaina Takitaka, que também é mãe, diz que a maneira como os asiáticos são representados na ficção é hoje um dos principais causadores de ideias estereotipadas.
“São sempre papéis secundários e rasos, que reforçam a ideia da gueixa”, reclama ela, que já perdeu a conta de quantas vezes ouviu que “falava muito para uma japonesa”.
Janaína fala sobre outras abordagens incômodas. “Eu estava fazendo uma pesquisa na Japan House quando um homem apontou pra mim e disse para o filho: ‘Tá vendo, é assim que eles são. Eles estão sempre estudando. Esse é um palitinho, é assim que eles comem’. Aí ele sacou uma câmera e começou a tirar fotos. Me senti um bicho no zoológico.”
Para quem trabalha na área cultural, não é só uma questão de representatividade, mas de oportunidades de empregos.
“O papel ‘normal’, ‘neutro’ vai sempre para um branco, e quando tem um que é para asiáticos… eles colocam um branco também”, diz Beatriz, do Yo Ban Boo, relembrando casos como o da novela Sol Nascente. A Globo colocou o ator Luis Melo no papel de um japonês e a atriz Giovanna Antonelli como protagonista em um núcleo nipônico.
Na época, o autor Walter Negrão disse que não encontrou “um ator japonês com estofo e a experiência necessária para fazer um protagonista” nem uma atriz “com status de estrela”. A Globo disse que a novela “não era sobre o Japão”.
A questão de representatividade é muito discutida pelo coletivo Oriente-Se, que é mais antigo e tem mais de 200 atores de ascendência asiática.
Beatriz teve que mudar de sobrenome para conseguir ser chamada para os testes de elenco. “Eu usava Koyama e nunca era chamada. Nas poucas vezes que apareciam papéis asiáticos era aquela coisa superestereotipada”, diz ela. A situação melhorou quando ela passou a usar o sobrenome do outro lado da família, Diaféria.
Minoria modelo?
“De certa forma [esse aumento da discussão] é o resultado do envolvimento de descendentes de asiáticos em políticas de esquerda. Por muito tempo, muitas pessoas abraçaram o discurso da direita conservadora e acabaram acatando a ideia de minoria modelo”, afirma Rodrygo.
“Minoria modelo”, explica Leonardo Hwan, se refere ao estereótipo de que os descendentes de japoneses são dóceis, estudiosos, trabalham muito e por isso conseguiram posições de destaque na sociedade, grande presença nas universidades etc.
“É uma coisa pseudoelogiosa que coloca as pessoas em caixinhas e reforça a opressão de outras minorias, principalmente dos negros. Porque quando você diz que japoneses estão bem porque são trabalhadores, você está implicando que outros grupos não trabalharam e ignorando todo um contexto de perseguição aos negros”, diz Leonardo.
“O estigma social sofrido por indivíduos asiáticos no Brasil não tange âmbitos da violência racial e opressão policial que mata pessoas negras diariamente, ou o genocídio contemporâneo em curso contra povos indígenas brasileiros”, diz Caroline Rica Lee, do coletivo Lótus.
Solidariedade
Segundo Fábio e Gabriela, os descendentes de asiáticos também têm um papel no racismo antinegro, que precisa ser discutido e combatido. “Muitas vezes reproduzimos a antinegritude, permitimos que mercantilizem nossas culturas e permanecemos calados porque isso nos concede privilégios”, afirma Gabriela, do Perigo Amarelo.
“Não dá para falar de raça no Brasil sem falar de solidariedade antirracista”, diz Fábio. Ele e Gabriela trabalham para que a discussão vá além da questão sobre representatividade e sobre ser aceito como brasileiro.
“Alguns leitores no blog falam: ‘ah, então vamos votar em asiáticos para ter mais representação’. Mas não é isso. Não adianta nada votar em asiáticos se eles tiverem uma plataforma neoliberal, uma plataforma que não promova a igualdade”, diz Fábio
“A gente não pode se contentar em brigar para ser visto como brasileiro e não como estrangeiro. Como você pode falar de brasilidade em um país construído com a ocupação de terras indígenas? A gente vai se contentar em exigir os mesmos privilégios dos brancos ou vamos pensar em construir uma sociedade que seja mais igualitária e justa para todos?”, questiona Gabriela.
Da BBCBrasil.