Maioria dos eurodeputados rejeita acordo UE-Mercosul
A maioria dos eurodeputados aprovou texto em que afirma que o acordo entre União Europeia e Mercosul não pode ser ratificado “como está”.
Em versão original do novo texto, o Parlamento afirmava estar “extremamente preocupado com a política ambiental de Jair Bolsonaro, que vai contra os compromissos do Acordo de Paris, em particular no combate ao aquecimento global e à proteção à biodiversidade”.
“Nessas circunstâncias, o acordo UE-Mercosul não pode ser ratificado como está”, conclui a alteração proposta pela eurodeputada francesa de centro Marie-Pierre Vedrenne.
A rejeição ao tratado foi mantida no texto final, mas a menção a Bolsonaro foi retirada.
O trecho foi incluído no parágrafo 36 do projeto de relatório (leia completo) de Jörgen Warborn sobre a implementação da política comercial comum, de 2018, com a aprovação de 345 eurodeputados em votação nesta terça (6).
Houve 56 abstenções e 295 foram contra.
A emenda não significa um veto ao tratado, que ainda não foi oficialmente submetido ao Parlamento, mas mostra pela primeira vez que a maioria dos eurodeputados resiste à ideia de aprová-lo.
Com o crescimento das mudanças climáticas entre as preocupações dos eleitores europeus, questões ambientais têm sido defendidas por vários partidos, além dos Verdes. Votatam pelo texto sociais-democratas, centristas do grupo Renova Europa e membros do bloco Partido do Povo Europeu, de centro-direita.
A crescente animosidade em relação ao desmatamento e incêndios na Amazônia e no Pantanal e à gestão Bolsonaro praticamente inviabilizam a assinatura de um acordo antes de 2022, afirmam analistas.
“Até mesmo a Alemanha, antes grande defensora do tratado de livre comércio, já expressa dúvidas”, diz Filipe Gruppelli Carvalho, analista para o Brasil da consultoria Eurasia.
Segundo ele, o acordo deve “submergir” na Comissão Europeia (Poder Executivo da UE, que negociou o tratado e a quem cabe encaminhá-lo para ratificação) até que apareça momento mais oportuno para a assinatura.
Iniciadas em 1999, as negociações entre os dois blocos foram concluídas em meados do ano passado, e em julho a Comissão afirmou esperar encaminhar o texto ao Parlamento neste mês.
A revisão jurídica, porém, ainda não foi concluída, segundo a UE, e o tratado ainda precisa ser traduzido nas 23 línguas oficiais do bloco antes de seguir para votação no Conselho Europeu (que reúne os líderes dos 27 membros), no Parlamento Europeu e, em sua forma atual, nos parlamentos nacionais e regionais.
Na tramitação prevista hoje, se for rejeitado em qualquer uma dessas instâncias, o acordo volta à estaca zero.
As equipes técnicas não têm prazo para terminar a preparação final do documento, e a comissão deve ganhar o máximo de tempo possível para tentar estimular a cooperação brasileira e apaziguar a oposição interna.
Segundo Carvalho, a estratégia de fatiar o acordo de associação para separar o tratado de livre-comércio, facilitando sua aprovação também perdeu força: “Era uma solução criativa para facilitar uma aprovação no Conselho Europeu, mas viria a um custo político alto, o de fazer unilateralmente o ‘split’ e, em tese, ignorar as rejeições”.
Os parlamentos nacionais, que não poderiam mais votar o acordo comercial, “enlouqueceriam”, afirma o analista, “enquanto os partidos populistas, grupos anticomércio e lobbies agrícolas iriam para as ruas protestar contra o acordo”.
Descrito em junho como “a única maneira de o acordo sobreviver” por um alto funcionário de comércio da UE, o fatiamento também quebraria o compromisso interno da EU para aprovar o acordo de associação em sua íntegra.
Quanto mais amplos os números de desmatamento e queimadas no Brasil, menor o espaço político para qualquer acordo neste ano.
Além dos números, a retórica do presidente tem consequências, diz o analista: “Muitos argumentam que ela cria incentivos para o comportamento ilegal na medida em que se espera que este governo não tome medidas punitivas contra ela”.
Embora o texto negociado entre os blocos já inclua entre suas cláusulas o respeito ao Acordo de Paris, as secretarias de Comércio da Holanda e da França já se manifestaram a favor da inclusão de punições comerciais mais claras no caso de desrespeito ambiental.
Um argumento apresentado por políticos de várias correntes é que, justamente quando a Europa está avançando um Green Deal que vai encarecer a produção agrícola do continente, não faz sentido reduzir tarifas para produtos importados sem garantir que eles sigam os mesmos padrões ambientais.
Segundo Carvalho, a tentativa de Bolsonaro de aplacar as críticas em sua abertura da Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro, não convenceu ouvidos europeus.
“A retórica de Bolsonaro se baseia muito mais em rejeitar a gravidade do problema do que em garantir à comunidade internacional que esforços estão sendo feitos”, diz Carvalho.
Entre os pontos do discurso que tiveram efeito inverso ao desejado estão as afirmações de que há “uma campanha de desinformação contra a política ambiental do Brasil” e de que “grupos indígenas são responsáveis por muitos dos incêndios”.
A Comissão Europeia e a maioria dos grupos industriais ainda defendem o pacto, que traria grandes vantagens ao bloco europeu, segundo relatório de impacto feito pela LSE (London School of Economics).
Mas o bloco tem outras prioridades no momento, como a segunda onda de coronavírus, crises na Belarus e no Mediterrâneo e disputas internas pelo respeito ao Estado de Direito.
Se um atraso na ratificação do tratado parece inevitável ao menos neste ano, o futuro não é exatamente favorável, em termos políticos.
Políticos do Partido Verde têm avançado em eleições locais e regionais em vários partidos, e podem integrar a coalizão governista na Alemanha, que faz eleições gerais em 2021.
O presidente da França, Emmanuel Macron, enfrenta eleições em 2022, e pode usar críticas à política ambiental brasileira como discurso para seus eleitores do setor rural, além dos ambientalistas.
O governo francês deu declarações recentes de que não aprova o acordo UE-Mercosul por temer que ele estimule o desmatamento.
Carvalho diz que um momento decisivo será a estação seca do próximo ano (de julho a setembro).
“Se o ritmo do desmatamento não diminuir, a pressão dos líderes europeus sobre o Brasil será significativa”, afirma ele.
Ana Estela de Sousa Pinto via FolhaPress