JEITINHO QUE MATA

A Obsessão por privilégios e a agressividade sintetizam como o brasileiro encara o espaço público, no qual o trânsito está inserido – o problema é que, no asfalto, essa herança social pode virar estatística

Por Felipe Pereira

Do UOL – São Paulo

Ilustrações: Denis Freitas

RÉGUA DA CIVILIDADE

Assumir riscos no trânsito é algo tão arraigado à personalidade do brasileiro que supera o instinto humano mais forte, o de sobrevivência. Ninguém se considera em perigo quando ultrapassa em local proibido, anda de bicicleta na contramão ou atravessa fora da faixa de segurança.

Mas essas pessoas deveriam se preocupar – ao menos um pouco. Uma pesquisa da Polícia Rodoviária Federal constatou que 97% dos acidentes em rodovias são provocados por falha humana – vale frisar que nem sempre é possível identificar a causa. Na cidade de São Paulo, esse mesmo fator, segundo a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), aparece em 98% dos registros com vítimas de acidentes fatais.

O massacre no asfalto é primordialmente consequência do desrespeito às normas de trânsito. Mas esse nível de imprudência não tem causa única, pois é também resultado da maneira como nossa sociedade foi formada: com aristocracia, privilégios, escravidão e machismo. Durante a Colônia e o Império, obedecer a qualquer regra era o comportamento esperado dos subalternos, não dos senhores.

Esse, digamos, “estilo de vida”, vai contra a lógica das leis e equipamentos de trânsito comuns ao espaço público. O semáforo não abre mais rápido para um SUV blindado do que para Fusca enferrujado. O princípio de igualdade não deixa brecha para o “você sabe com quem está falando?”. O choque da impessoalidade do trânsito dentro de uma sociedade personalista é, na opinião do antropólogo Roberto da Matta, a origem de toda essa agressividade e desobediência. Ainda segundo o antropólogo em uma República, sem dúvida, os sinais servem para todos. No Brasil, não obedecem. Você pergunta: por quê? Porque esse nosso problema não é com a desigualdade, nosso problema é quando você tem a igualdade.

Muitas vezes essa maneira de ser, comumente chamada de “jeitinho”, que acomoda parte das nossas raízes, entra em ação sem consequências imediatas ou em curto prazo. Há quem veja esse comportamento como um trunfo para a sobrevivência em meio a dificuldades. Mas quando esses “recursos” encaram as particularidades do trânsito, o que temos em troca é uma estatística que revela o grau de civilidade – ou falta dela – em uma nação.

Em 2013, por exemplo, o Brasil foi o quarto país do mundo em número absoluto de mortes no trânsito (43.869) e o 42º no ranking de mortes a cada 100 mil habitantes (22,5), segundo relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde). Esse quadro é pior que o depaíses como Somália, Bangladesh e Haiti. Alguns registros domésticos são ainda mais alarmantes.

Da Matta realizou um estudo para entender os motivos de tanta violência no asfalto. O trabalho virou o livro “Fé em Deus e Pé na Tábua: ou Como e Por Que o Trânsito Enlouquece no Brasil”. A pesquisa aponta que as estatísticas são consequência de uma convivência mal resolvida de dois países dentro do Brasil. Um deles é herdeiro da Colônia e do Império, com os poderosos dispensados de seguir as leis – comportamento característico de quando havia um regime escravocrata no Brasil.

Esse sistema foi legitimado pelo Estado por quase quatro séculos. Deveria ter desmoronado com a abolição da escravatura, em 1888, e a proclamação da República, no ano seguinte. No papel, todos ficaram submetidos às mesmas regras, e estaria aberto o caminho para a formação desse outro país, no qual todos são iguais. Na prática, como sabemos, foi diferente.

Mas cabe ressaltar que não é uma questão de ricos opressores e pobres oprimidos. Seria uma simplificação rasteira. O motoboy não está no topo da pirâmide social, mas faz o motor roncar alto para o pedestre apressar o passo quando o sinal está prestes a abrir. Quem anda a pé não se constrange em “tourear” os carros para atravessar a rua fora da faixa.

A agressividade e desrespeito às leis para levar vantagem fazem parte do modo de encarar o espaço público no qual o trânsito está inserido. O sonho do brasileiro é ser aristocrata.

Quando declaram que no país nunca houve revolução social de verdade, apenas uma sucessão de oligarquias, é sobre mudanças dessa magnitude que estamos falando. Em princípio, pode parecer distante, mas tem tudo a ver com as mortes nas ruas e estradas.

A ideia da circulação irrestrita de pessoas é relativamente recente. Em São Paulo, começa na segunda metade do século 19 com a chegada de equipamentos urbanos como o bonde (1872) e a energia elétrica (1889). Antes disso, a metrópole dos congestionamentos intermináveis estava mais para uma cidade fantasma após o pôr do sol.

A professora do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo) Fraya Frehse conta que as novidades da época aportaram numa sociedade repleta de indicadores de classe social. Mesmo usando roupas bonitas e informando à qual família pertenciam, os negros não podiam usar sapato. Bengala e bigodes eram exclusivos dos fidalgos.

O bonde deveria permitir a ocupação do mesmo espaço físico, mas logo surgiu uma placa avisando que, para subir, era preciso pagar a passagem e estar calçado. A abolição da escravidão permitiu a todos usarem sapatos, surgindo uma nova profissão. O engraxate fez os pés da elite brilharem. A diferença social reinventava-se para atualizar demarcações.

O automóvel se mostrou perfeito para essa tarefa. O primeiro exemplar chegou a São Paulo em 1901, e o dono era Henrique Santos Dumont, irmão do aviador. Numa sociedade hierarquizada, o carro rapidamente virou símbolo de ascensão social, algo que se perpetua até hoje.

O psicólogo Jacob Goldberg identifica outra herança desses tempos: tratar espaços públicos como lugares a serem ocupados por quem chegou primeiro. Vale para a quadra do parque, o brinquedo infantil da praça, a mesa de xadrez na orla da praia e as ruas. No trânsito, a consequência é encarar os demais cidadãos como concorrentes. Ocorre que, quando adversários entram numa disputa, essa atitude aflora a agressividade.

TOUREANDO O TRÂNSITO

O psicólogo cita o exemplo das bicicletas. Lembra que em vários países ela serviu como instrumento de humanização, mas no Brasil o movimento em duas rodas foi acompanhado, entre erros e acertos, de conflitos com pedestres, skatistas e carros. A exemplo do antropológo Da Matta, Goldberg explica que séculos de hierarquização criaram um comportamento nacional padrão: quando um grupo sobe um degrau social, se considera merecedor de mais direitos – não que isso esteja necessariamente errado, dependendo de qual for o contexto da transformação.

Ele ilustra com o seguinte comentário: O sujeito pega a bicicleta e leva para calçada, anda na contramão. Isso é paradoxal. Uma bandeira civilizatória já avacalhou, já virou selvageria.

Ativista do ciclismo e apresentadora do programa “Bike é Legal”, na TV Gazeta paulistana, Renata Falzoni pensa diferente dos especialistas sobre a função humanizadora da bicicleta. Admite que há problemas, mas alega que são casos pontuais e não podem se usados para rotular um grupo. Ela declarou que os ciclistas estão aprendendo a dividir espaço com pedestres e a interação está tornando a sociedade mais cordial.

Mas o passado aristocrata tem outro reflexo nas ruas. A carteirada é uma tentativa de restabelecer os privilégios de outros tempos. O caso da agente de trânsito Luciana Tamborini é um exemplo. Ela parou uma Land Rover sem placas numa blitz da lei seca no Rio de Janeiro em março de 2013. O motorista era o juiz João Carlos de Souza Correia, que além de se negar a fazer teste de bafômetro, estava sem documento do veículo e a carteira de habilitação. Foi multado e levou o caso à Justiça.

Foi nesse contexto que o desembargador José Carlos Paes entendeu que houve abuso de poder por parte de Luciana. Quando o infrator alegou que era juiz, ela ignorou a carteirada e tascou a multa, respondendo que o motorista poderia ser juiz, mas não era Deus. Acabou condenada a pagar uma indenização de R$ 5.000.

ORGULHO E PRECONCEITO

O incentivo ao mau comportamento no trânsito não é, claro, exclusividade do Brasil da época da família real. Ele recebeu reforços ao longo do período republicano. Goldberg menciona o governo Juscelino Kubitschek, que entrou na onda do movimento batizado de “americanalhada” – o neologismo serve para o ato de usar o carro como prova de triunfo profissional e superioridade sobre amigos e parentes.

Essa importação teve reflexos na música, desde Roberto Carlos até o funk ostentação, exaltando as “naves”, palavra usada pelos MCs para se referirem aos carros. E não faltam exemplos pelo mundo. Filmes com perseguições de automóveis e mulheres se derretendo por machões em superesportivos são mais do que um clichê – tratam da simbologia fálica dessas máquinas.

A visão de superioridade em desrespeitar as leis tem outro desdobramento numa sociedade que historicamente privilegiou os homens. Como o poder sempre foi masculino, para se sentir vencedora a mulher incorpora esse personagem quando está ao volante. Copia comportamentos como dirigir acima da velocidade, forçar ultrapassagens e xingar. Num país que só deu vez aos homens por séculos, a suavidade e delicadeza viraram sinais de fraqueza.

Discutir as raízes do Brasil ainda remete ao mito do homem cordial, definição de Sérgio Buarque de Holanda. Doutora em Antropologia, a pesquisadora da FGV (Fundação Getulio Vargas) Margareth da Luz explica que esse personagem podia ser bastante afável, mas também muito cruel.

No tempo do Império, o mesmo senhor que demonstrava alguma humanidade a criados domésticos mandava açoitar qualquer “desobediente” da senzala. Hoje, um cidadão pode ser amoroso em família e desrespeitoso na rua. O caráter agressivo do trânsito é um espaço propício para o lado violento florescer.

Mas o brasileiro não se importa com a brutalidade existente nas ruas e estradas. Ele considera o trânsito um problema por causa das filas, não pelas mortes.

Especialista em trânsito e integrante do Conselho Federal de Psicologia, João Alchieri ajuda a entender tamanha indiferença. Ele explica que as pessoas não mensuram o que significa 42 mil mortes ano em acidentes e sugere a criação de campanhas que deem nome, cara e história às vítimas – assim, diz Alchieri, há maior chance da sociedade se identificar com o problema.

Ele cita o caso da crise dos refugiados na Europa, tratados como números até a foto de Aylan Kurdi, 3, encontrado morto numa praia da Turquia, ganhasse gigantesca repercussão. A imagem fez o mundo entender que o assunto dizia respeito a seres humanos, não a estatísticas.

Alchieri conta que essa impessoalidade se repete no trânsito. Explica que, com um carro trafegando acima de 60 km/h, fica impossível olhar no olho do motorista. A relação desta interação humana é totalmente fria. O contato pode mudar essa relação.

Quem dirige sabe a diferença que faz quando uma pessoa acena com a mão pedindo para mudar de faixa. A leitura da expressão corporal e facial sugere empatia e a facilitação da manobra. Depois, rola aquela buzinadinha curta e simpática de agradecimento.

Situação bem diferente de alguém forçar para entrar na frente de um veículo. Nessas condições, a reação se dá na buzina do motorista prejudicado, que é longa e sonora.

GENTILEZA GERA GENTILEZA

O Código de Trânsito Brasileiro é moderno e adequado para lidar com a situação vivida nas vias do país, avalia Mauricio Januzzi Santos, presidente da Comissão de Direito Viário da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil). A única mudança defendida pelo especialista é enquadrar algumas atitudes no Código Penal e não na legislação de trânsito.

Para ele, fazer pega (ou racha), dirigir embriagado, sob efeito de drogas ou acima de 50% do limite de velocidade deveria ser classificado como crime e não como mera infração que acarreta em multa e pontos na carteira. Há processos no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e STF (Supremo Tribunal Federal) pedindo essa mudança. Mas a tendência, segundo Januzzi, é que essa ideia seja rejeitada. A alternativa seria mexer na legislação.

Na Europa e alguns estados norte-americanos o processo já funciona dessa maneira, afirma Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Logística da Fundação Dom Cabral. Pesquisador da área, ele menciona uma descoberta que ajuda a entender a cabeça do motorista brasileiro.

Desde o processo de concessão, iniciado na década de 1990, as rodovias que cortam São Paulo estão em bom estado. Vendo que a estrada é duplicada e sem “crateras”, os motoristas apertaram com gosto o acelerador. Resende conta que aumentaram muito os acidentes provocados por excesso de velocidade: capotamento, saída de pista e colisão com objetos localizados às margens do asfalto como muretas, árvores e placas.

A partir do momento em que os motoristas enxergarem numa rodovia em boas condições apenas uma forma segura de viajar, e não um convite a acelerar, é porque algo mudou na mentalidade do brasileiro. Respeitar a lei acarreta menos vítimas. Se é a lógica da desigualdade e a hierarquização que causam tantas mortes, a redução desses números mostrará que houve avanços no conjunto da sociedade. Não será somente no trânsito que as regras valerão para todo mundo.

 

Colaboraram nesta edição:

Roberto da Matta, antropólogo; Jacob Goldberg, psicólogo; Fraya Frehse, professora de Sociologia da USP; Margareth da Luz, a pesquisadora da Diretoria de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas; Mauricio Januzzi  Santos, presidente da Comissão de Direito Viário da OAB SP; João Alchieri, integrante do Conselho Federal de Psicologia; Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Logística da Fundação Dom Cabral; Diogo Mangiacavalli, animação.