França inicia julgamento de ex-cirurgião acusado de crimes sexuais contra 299 crianças
- 3 de fevereiro de 2025 - 10:35
A França inicia neste mês um dos maiores julgamentos de abuso infantil de sua história. O ex-cirurgião Joël Le Scouarnec, de 73 anos, enfrenta acusações de violência sexual contra 299 crianças, a maioria ex-pacientes, entre 1989 e 2014, período em que atuou em hospitais da região da Bretanha.
O médico, que já cumpre uma sentença de 15 anos de prisão por outros crimes, está preso desde 2017, quando foi denunciado por familiares e uma paciente. As novas acusações, baseadas em anos de investigação policial, expõem não apenas a extensão dos abusos, mas também falhas institucionais que permitiram que ele continuasse exercendo a medicina por décadas, apesar dos alertas e suspeitas que o cercavam.
Descobertas da investigação
O caso veio à tona após a denúncia dos pais de uma menina de seis anos, o que levou a uma busca na residência de Le Scouarnec. No local, as autoridades encontraram centenas de milhares de imagens de abuso infantil, bonecas de tamanho infantil e diários meticulosamente escritos, nos quais ele supostamente detalhava os abusos cometidos ao longo de 25 anos.
Os registros continham descrições explícitas de vítimas, incluindo pacientes e pessoas de seu círculo pessoal. Apesar das evidências, o ex-cirurgião nega grande parte das acusações, alegando que os diários eram apenas “fantasias”. No entanto, em diversos trechos, ele próprio escreveu: “Sou um pedófilo”, reforçando a gravidade das suspeitas.
Negligência e omissão de autoridades
A investigação também revelou que hospitais e órgãos de fiscalização médica ignoraram indícios de sua conduta inadequada. Um dos episódios mais graves ocorreu nos anos 2000, quando o FBI alertou a polícia francesa de que Le Scouarnec acessava conteúdo de exploração infantil na internet. Mesmo assim, ele recebeu apenas uma pena suspensa de quatro meses, sem qualquer restrição profissional.
Além disso, há relatos de que colegas de profissão e membros da família tinham conhecimento das suspeitas há décadas, mas não tomaram medidas para interromper os abusos. “O silêncio permitiu que ele continuasse cometendo esses crimes por anos”, afirmou um advogado envolvido no caso à BBC.
Vítimas lidam com traumas
As denúncias incluem mais de 100 casos de estupro e 150 de agressão sexual. Algumas vítimas, agora adultas, relataram ter sido tocadas sob o pretexto de exames médicos, mesmo na presença de familiares ou de outros profissionais de saúde.
Muitos dos abusos teriam ocorrido enquanto os pacientes estavam sob efeito de anestesia, impossibilitando que se lembrassem do que aconteceu. O choque veio anos depois, quando receberam a informação de que seus nomes estavam listados nos diários do ex-cirurgião, acompanhados de descrições detalhadas dos crimes cometidos.
Para algumas vítimas, a revelação ajudou a explicar traumas que carregavam sem compreender. No entanto, para outras, reviver a experiência tem sido devastador. A advogada Francesca Satta, que representa um grupo de vítimas, afirmou à BBC que dois de seus clientes tiraram a própria vida após descobrirem os registros sobre si nos diários do ex-médico.
O jornal francês Le Monde descreveu Le Scouarnec como alguém que se sentia “acima de qualquer suspeita” e que via seus crimes como “transgressões calculadas”, aproveitando-se da posição de poder e da confiança que sua profissão lhe proporcionava.
Falhas do sistema permitiram os abusos
O julgamento também deve abordar a responsabilidade das autoridades médicas e hospitalares, que, mesmo cientes das suspeitas, permitiram que ele continuasse atuando por anos.
Em 2006, um médico que desconfiava de Le Scouarnec pediu providências à associação regional de medicina. No entanto, após uma votação interna, a entidade decidiu não aplicar nenhuma sanção ao cirurgião, alegando que ele não havia violado o código de ética profissional.
Para Frédéric Benoist, advogado da organização La Voix de L’Enfant, que atua na defesa dos direitos infantis, a conivência institucional foi decisiva. “As informações estavam disponíveis, mas ninguém agiu. Isso custou caro para centenas de vítimas”, declarou à BBC.
O julgamento e a busca por justiça
O processo contra Le Scouarnec começa em 24 de fevereiro e deve se estender até junho. Para acomodar o grande número de vítimas, seus representantes legais e familiares, três salas de um prédio universitário foram disponibilizadas.
A participação do público e da imprensa depende de uma decisão coletiva das vítimas, que precisam abrir mão do direito ao sigilo judicial. Para muitos advogados, esta será uma oportunidade de expor falhas do sistema e dar voz às vítimas, que, por anos, foram silenciadas pela impunidade.
A advogada Satta enfatiza que, mesmo aqueles que não têm lembranças nítidas dos abusos, ainda sofrem com os impactos psicológicos. “As marcas desse tipo de violência não desaparecem. Este julgamento representa um passo crucial para que todas as vítimas sejam reconhecidas.”
Benoist, por sua vez, afirma que o julgamento de Le Scouarnec vai além do próprio acusado. “Não se trata apenas de um homem, mas de um sistema que falhou repetidamente. A sociedade precisa de respostas, e as vítimas merecem justiça.”