Ex-catadora de lixo se forma na Ufes e diz: ‘educação me transformou’
Ercília Stanciany desafia o improvável e mostra que, com dedicação, o sonho dela foi possível.
uando ainda estava no ensino médio, já casada e com filhos, Ercília Stanciany da Silva Mozer, 46 anos, ouviu de um colega de classe que ela nunca iria concluir aquela etapa de estudos, muito menos entrar na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), assunto que gerou o comentário negativo do colega de pouca fé.
Anos depois, ela se ajeita na cadeira no meio da minibiblioteca que mantém em casa, para posar para foto com um documento na mão e diz, antes de exibir o sorriso tão largo que chega a lhe apertar os olhos: “Olha aqui o meu diploma!”.
Clique feito, ela volta a falar, como boa conversadeira que é, sobre a sua história. “A educação me transformou”, destaca.
Ercília veio de Minas Gerais há 13 anos com o marido e a filha, então com sete, sem um centavo no bolso, “nem para comprar um café no trem”, para o Espírito Santo.
A família veio atrás de melhores chances e encontrou no recolhimento de lixo reciclável a sobrevivência possível em terras capixabas.
Ercília chamou a atenção do Espírito Santo ao ter sua história contada, em março de 2012, por passar para o curso de Artes Plásticas da Ufes, pelo sistema de cotas, estudando com os livros que ela encontrava nos lixos.
E chamou a atenção do Brasil, ao ser a estrela do quadro “Lar Doce Lar”, do programa da Rede Globo “Caldeirão do Huck”, e ter o barracão, como ela chama, onde vivia, em Nova Almeida, Serra, ser completamente transformado.
Hoje, ela se dedica à pós-graduação de Arteterapia, iniciada logo após ela receber, em abril deste ano, o certificado de conclusão do curso de Artes Plásticas.
“Disseram que não posso dar aula em escola pública porque sou bacharel ainda. A Arteterapia então me abriu um leque de oportunidades para trabalhar. A Arteterapia foi reconhecida pelo SUS e vou usar isso para chegar às pessoas. Quero ajudar”, disse.
Saúde
O curso de quatro anos de duração foi concluído em cinco, por causa de greves na universidade e por problemas de saúde. “É falta de oxigenação no cérebro. Comecei a esquecer das coisas. Um dia estava no terminal de Jacaraípe e não lembrava para onde estava indo.”
“O médico disse que isso foi resultado de muito sofrimento. Quando criança, eu ia para o lixão pegar comida para os meus irmãos e para a minha mãe. Meu pai bebia muito, me batia muito”, relembra.
Outro ponto nebuloso é a relação com a filha de 20 anos, que hoje mora com a avó: “Ela nunca aceitou nossa vida de catadores. Ela tem muitas questões para resolver”. “Hoje entendo que meu pai era doente e que a minha filha é assim e pronto”, diz, resiliente.
O curioso é que todo o sofrimento com a figura masculina do pai durante a infância foi compensado pela figura do marido, o Everaldo, 53 anos, que hoje trabalha como operador de moto roçadeira.
“Abaixo de Deus é meu marido, meu companheiro, meu porto seguro.” E completa, para não ser injusta com os homens de sua vida: “E tem o meu filho Breno Miguel (11 anos). Meu pequeno é show”.
Há duas semanas, Ercília reencontrou em um mercado o colega de escola que disse que ela não concluiria o ensino médio. “Ele perguntou debochando se consegui entrar na Ufes.” Sem precisar debochar, ela não só confirmou que entrou, mas que, tão importante quanto, conseguiu sair.
Realização
Hoje o que Ercília Stanciany, 46, quer é vestir a beca para família e aproveitar a pequena biblioteca, formada com livros doados, para ajudar outras pessoas.
“Disseram que a Ufes era impossível” – Ercília Stanciany, pós-graduanda
#ENTREVISTA
Vai ter formatura?
Não, nunca sonhei com festa. Não condiz com a minha história nem com as minhas condições financeiras. A minha ideia é ir para Minas Gerais, onde mora a minha família, alugar uma beca e tirar foto lá. A beca é simbólica. O que eu mais escutava era que Ufes para mim era impossível.
Como vieram para o Estado?
Eu e meu marido estávamos desempregados. Ele veio de ônibus e eu, com a minha filha, de trem, há 13 anos. No trem, vim com 12 sacolas de açúcar com todas as nossas coisas. Não trouxe um centavo para tomar um café dentro do trem. Meu marido teve que pedir dinheiro da passagem do ônibus emprestado para buscar a gente na estação.
Como iniciaram como catadores?
O lixo veio após a nossa chegada. Botaram um nome bonito, material reciclável, mas o nome é lixo. Hoje eu me dedico à pós-graduação de Arteterapia e meu marido trabalha numa empreiteira para a Vale. A gente continua juntando sucata no fim de semana, mas hoje não tem muito valor.
E o que vai fazer com esse monte de livro?
Quero transformar isso aqui num biblioteca e fazer oficinas de arte gratuitas aqui. Tudo para atrair as pessoas para a leitura. As informações são do G1.