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Escola deveria incorporar ‘conversa de boteco’, diz educadora

Em vez de replicar bons sistemas de ensino de outros países, o Brasil deveria se inspirar neles e criar um modelo aproveitando traços da cultura nacional, como o gosto pela música e pela conversa, diz Cláudia Costin, ex-diretora do Banco Mundial para Educação e professora visitante na Universidade Havard (EUA).

Professora em sala de aula

Para ex-diretora do Banco Mundial para Educação, dinâmica das aulas deveria lembrar uma roda de conversa, e não uma palestra – Image copyright PEDRO RIBAS/ ANPRI

“A dinâmica das aulas deveria lembrar mais nossas rodas de conversa do que uma palestra. Nada é mais contrário à nossa cultura fora dos muros da escola do que a forma como damos aula hoje”, afirma.

Em entrevista à BBC Brasil, Costin diz ainda que as centenas de escolas brasileiras ocupadas por estudantes ao longo do ano jamais serão como antes, já que os alunos não aceitarão mais assistir às aulas passivamente.

Formada em administração pública na FGV-SP, Costin passou os dois últimos anos no Banco Mundial, após chefiar entre 2009 e 2014 a secretaria de Educação do Rio de Janeiro na gestão Eduardo Paes (PMDB). Antes, foi secretária de Cultura do Estado de São Paulo (2003-2005) e ministra da Administração e Reforma do Estado do governo FHC (1995-2002).

Cláudia Costin
Cláudia Costin chefiou a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro até 2014 – Image copyright ARQUIVO PESSSOAL

Ela deixou o banco neste ano para lecionar em Harvard, trabalho que conciliará com a direção do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe). Instalado na FGV-Rio há pouco mais de um mês, o órgão terá entre seus objetivos melhorar a formação de professores.

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil – No Brasil, em que medida o sucesso profissional de alguém se deve à qualidade de sua formação escolar, e em que medida se deve a fatores como círculo social, gênero e raça?

Claudia Costin – Há uma pesquisa mostrando que 68% do sucesso escolar de um aluno depende dos anos de escolaridade dos pais. A criança da escola pública na média já sai perdendo por aí, e depois na vida profissional a desigualdade continua se agravando, porque as que vêm de um meio mais favorecido têm pais com bons contatos e colegas que vão se colocar bem no mercado.

Existe uma promessa na sociedade de igualdade de oportunidade que não está sendo cumprida. Para que seja, a escola pública tem que ser muito melhor.

BBC Brasil – Há estudos que relacionam sistemas de ensino bem sucedidos, como o finlandês e o sul-coreano, a traços culturais dos países que os adotaram. Que características culturais brasileiras poderiam embasar um sistema de ensino que explore todo o nosso potencial?

Costin – Se fosse pensar num traço cultural que pudesse orientar a nossa maneira de dar aula e repensar o ensino é a conversa de boteco. É curioso: somos um povo que gosta muito de conversar, mas a conversa é reprimida na escola, é vista como algo errado.

A conversa deveria ser coletiva na escola: em grupos e, depois, de maneira centralizada. A dinâmica da aulas deveria lembrar mais nossas rodas de conversa do que uma palestra. Nada é mais contrário à nossa cultura fora dos muros da escola do que a forma como damos aula hoje.

Meninas conversam em escola pública
Conversa deveria ser coletiva nas escolas, diz Costin – Image copyright PEDRO RIBAS/ ANPR

BBC Brasil – Há outros elementos que poderiam ser melhor aproveitados?

Costin – Na nossa cultura, a música também tem um papel extremanente importante. No Rio, criamos escolas vocacionais (focadas em temas específicos). Uma delas fica ao lado do bloco carnavelesco Cacique de Ramos.

Os alunos têm um currículo normal com sete horas de aula por dia, mas todos os textos em português e em matemática são relacionados à musica e ao samba. Eles passam três horas por dia aprendendo a ler partitura, a tocar instrumentos, a compor samba enredo.

Essa escola é hoje uma das melhores do Rio – um exemplo de como podemos usar a música para dar uma formação integral e com a nossa cara.

BBC Brasil – Algo mudou no debate sobre a educação no Brasil desde que você deixou o país, em 2014?

Costin – Ampliou-se a percepção de que as crianças não estão aprendendo. O Brasil viveu um momento de celebração em 2012 pelo fato de termos sido o país que mais avançou em matemática no Pisa (principal teste internacional que mede a qualidade do ensino) entre 2003 e 2012.

Por certo tempo podíamos pensar que, como fomos um dos últimos países a universalizar o ensino primário, a qualidade da educação estava ruim, mas ia melhorar. Mas hoje estamos estagnados num patamar muito baixo.

BBC Brasil – Por que o resultado deixou de melhorar?

Costin – Porque as transformações mais importantes demandam uma alteração na forma como formamos professores. Devemos tornar a formação mais profissionalizante, assim como medicina e engenharia fazem.

A universidade no Brasil forma professores nos cursos de licenciatura e pedagogia focando demasiadamente nos fundamentos da educação, como filosofia da educação, sociologia da educação, e quase nada na prática do professor nas aulas.

Além disso, dada a baixa atratividade da carreira, hoje os 25% piores alunos do ensino médio se tornam professores. Na Finlândia e Coreia do Sul é o oposto: os 25% melhores viram professores.

Jovens do terceiro ano do ensino médio em escola da Bahia
Para Costin, nos últimos anos, no Brasil, cresceu a percepção de que as crianças não estão aprendendo na escola – Image copyright SUAMI DIAS/ GOVBA

BBC Brasil – Como mudar a formação do professor? É algo que deve ser feito pelo governo ou pela universidade?

Costin – As duas coisas. Tem muita gente fazendo mestrado e doutorado em educação no exterior. Minha esperança é que voltem para as universidades brasileiras para transformá-las por dentro.

Por outro lado, o Estado de São Paulo passou a repassar recursos adicionais para universidades formarem professores com base num determinado currículo. Na gestão do Fernando Haddad no Ministério de Educação, havia a discussão de criar uma prova nacional de certificação, que daria ao indivíduo o direito de ser professor. É algo que existe no mundo todo e, dependendo de como fizerem a prova, há como influenciar a universidade.

Outra coisa que pode ser feita é exigir uma prova prática nos concursos para seleção de professores. Que eu saiba, só Rio de Janeiro e Curitiba fazem isso hoje.

BBC Brasil – Como gastar melhor o dinheiro com o treinamento de professores?

Costin – Fazendo com que trabalhem de forma colaborativa dentro da escola e estimulando que professores tenham mentores e tutores quando entram na carreira. Grande parte do que se gasta hoje com formação de professores é desperdiçada.

Há pesquisas mostrando que não há nenhuma relação entre o desempenho do aluno e o fato de o professor ter feito mestrado ou doutorado, por exemplo. No Rio, fizemos uma avaliação externa e descobrimos que a professora primária da melhor turma da rede não tinha nem feito faculdade.

BBC Brasil – Qual era o segredo dela?

Costin – Era uma professora mais velha, que entrou na rede numa época em que não se exigia faculdade, e que dava aula numa região muito violenta. Ela começava a aula acalmando as crianças, num processo de catarse em que cada uma contava o que tinha acontecido na noite anterior. Instintivamente e sem ser psicóloga, ela trouxe serenidade para o grupo, e aí o conteúdo podia ser trabalhado.

Parecia que ela tinha estudado como desenvolver competências socioemocionais: persistência, resiliência, autocontrole. Esse é o grande debate da educação hoje: como, além das competências cognitivas, trabalhar competências para viver em sociedade, como empatia e respeito ao outro – coisas de que nós, adultos, estamos precisando muito nesses tempos de ódio.

Estudante em escola ocupada
Costin compara ocupação das escolas ao que aconteceu em 1968 em alguns países europeus – Image copyright TÂNIA RÊGO/ AGÊNCIA BRASIL

BBC Brasil – Como acompanhou o movimento de ocupação de escolas pelo Brasil neste ano?

Costin – Senti que ele começou de um jeito e virou uma coisa bem diferente. Em alguns casos, tenho a impressão de que, movidos por interesses corporativistas, professores falaram de suas frustrações para os alunos e os encorajaram a ir à luta. Mas, quando se libera um movimento social, ele não fica sob o controle de quem o iniciou.

Acho que os alunos aprenderam muito com esse processo e agora ningém mais vai conseguir ter uma escola igual a antes, com o professor no comando escrevendo no quadro e o aluno anotando. Guardadas as proporções, vai se assemelhar ao que aconteceu em 1968 em alguns países europeus. As escolas vão mudar, e isso vai ser positivo porque vai ser centrado no protagonismo do aluno.

O aluno tem que ser protagonista da sua vida escolar. Na Finlândia, quando um aluno do ensino médio tem problemas de disciplina, a escola não chama os pais, ela discute com ele mesmo. No Brasil, muitas vezes famílias e escolas infantilizam o aluno de ensino médio.

BBC Brasil – Qual sua posição sobre o movimento Escola sem Partido (proposta de lei que, segundo os autores, busca coibir a doutrinação ideológica nas escolas e proteger a educação moral que os alunos recebem em casa)?

Costin – Sou contra a proposta, não concordo com censura em educação. Mas, ao mesmo tempo, quando acontece uma coisa dessas, é bom parar para pensar por que estão falando disso.

Há muito professor que, seja de direita ou esquerda, relata sua visão de mundo para o aluno como se fosse a verdade, em vez de ensiná-lo a pensar. Isso é preocupante. Então acho que a proposta da lei estava errada, mas temos de ter um mecanismo para que as pessoas nem pensem nessa possibilidade.

BBC Brasil – Alguns analistas dizem que, embora tenha havido uma forte expansão do ensino superior no Brasil na última década, não se deu a mesma atenção ao desenvolvimento de centros de excelência voltados à formação de uma elite. A cítica faz sentido?

Costin – Acho que o Brasil fez exatamente o oposto. Só 18% da população entre 24 e 34 anos terminou a universidade. É uma elite. Países com o mesmo grau de desenvolvimento que o nosso têm índices maiores.

O número de vagas aumentou, mas acho que a universidade está ressentida, ela não queria ser ampliada. Há segmentos que desejam que houvesse menos médicos, menos engenheiros, para ter uma reserva de mercado.

BBC Brasil – Que achou da proposta de reforma do ensino médio e da forma como foi submetida ao Congresso, por meio de medida provisória?

Costin – O conteúdo não foi feito pelo governo Temer, ele foi feito pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação e respaldado por sucessivos ministros da Educação.

O que está no conteúdo vai dar um trabalho louco, mas está correto. O erro foi tentar fazer por medida provisória. Não se transforma a educação sem muita discussão.

Protesto na UNB contra PEC que estabelece um teto para os gastos públicos
Protesto na UNB contra PEC que estabelece um teto para os gastos públicos; entrevistada não concorda com a inclusão da educação no texto – Image copyrigh MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

BBC Brasil – Como melhorar a educação após a aprovação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que congela por até 20 anos os gastos federais no setor?

Costin – Não concordei com inclusão de educação na PEC e acho que deveríamos brigar para rever essa questão. Quando há uma crise fiscal, é natural que se queira cortar gastos. Mas mesmo os países com atuação fiscal importante tratam a educação como prioridade.

Com o congelamento, estamos condenados a ter a profissão de professor com baixos salários e, portanto, pouco atraente por muitos e muitos anos. Isso prejudica a educação. Nenhum sistema é melhor que a qualidade de seus professores.

BBC Brasil – As críticas que você recebe desde que chefiou a secretaria de Educação no Rio, que a associam à defesa do ensino privado e a uma postura autoritária na negociação com sindicatos, a incomodam?

Costin – Dediquei a vida inteira à escola pública e acho que não se constrói equidade sem focar escola pública. O que esse grupo criticava é termos feito parcerias com instituições de formação de professores que eram privadas.

Isso não me perturba. Eles acham que não deveríamos contratar ninguém para formar professores, ou que só deveria haver universidades públicas ou a própria rede formando professores.

Mas, se não temos determinado conhecimento, é importante que alguém prepare o professor. Se forem fundações sem fins lucrativos, não tem problema. É isso o que o mundo faz.

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