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© Antonio Cruz/Agência Brasil

Entre o comércio e a fé, trabalhadores buscam dignidade durante a Via Sacra em Planaltina

Evento reuniu cerca de 100 mil pessoas e mobilizou moradores com histórias de luta e esperança

“Olha o salgadinho… cinco reais.” Matheus de Souza, 27, aproveitava os intervalos de silêncio da missa que antecedia a tradicional encenação da Via Sacra, em Planaltina (DF), para oferecer seus produtos ao público. Há mais de três horas carregava, nos braços, pacotes de salgadinhos, enquanto equilibrava os próprios sonhos — um emprego fixo e a chance de retomar os estudos.

Matheus Souza, que sonha com um emprego fixo e a volta à escola, vende salgadinhos aos fiéis na Via Sacra – Antonio Cruz/Agência Brasil

Pai solo de duas meninas pequenas, Matheus trabalha como auxiliar de limpeza em uma escola particular. O salário que recebe, no entanto, não é suficiente para custear os estudos. “Estudei só até a quinta série. Nem sei ler direito”, contou. Após o expediente, das 9h às 18h, ele assume um segundo turno vendendo lanches nos semáforos da capital até as 22h. Em casa, cuida das filhas e recomeça a rotina no dia seguinte.

Devoto do apóstolo que carrega em seu nome, Matheus pede ajuda divina. “Cresci com fé. Peço ao São Matheus e a Jesus Cristo, que vai ressuscitar lá no alto do morro, que me deem uma oportunidade. Seria um milagre.”

Caminho de fé e superação

O milagre que o cearense José Silva espera, enquanto vende batata frita, é “se virar” e, quem sabe, retomar os estudos – Antonio Cruz/Agência Brasil

 

Na mesma celebração, o cearense José Silva, 40, vendia batatas fritas em meio à multidão. Morador de Águas Lindas de Goiás, a 85 km de Brasília, José trabalha com vendas desde a infância, em Juazeiro do Norte. O trajeto até Planaltina levou mais de cinco horas no sábado. “Quem está sem trabalho precisa se virar mesmo. Amanhã será outro dia.”

José estudou até a segunda série e, por se considerar analfabeto, decorou parte dos letreiros dos ônibus para conseguir se locomover. “Seria um milagre voltar a estudar, mas só se Deus quisesse mesmo.”

Arte com palha e o desejo de uma nova vida

Flores e chapéus feitos com palha de coco verde foram levados pelo mineiro Carlos, que sonha terminar o ensino fundamental – Antonio Cruz/Agência Brasil

 

Outro personagem da celebração foi Carlos Silva, de 39 anos, morador de Planaltina e artesão. Durante o evento, ele permaneceu no pórtico de entrada oferecendo chapéus, flores e cestas feitos com palha de coco verde. Natural de Montes Claros (MG), Carlos é devoto de Padre Cícero e carrega consigo o desejo de concluir o ensino fundamental pelo programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Ter uma casa para morar, terminar o curso e alugar uma loja seriam milagres para mim. Eu ficarei rezando e ouvindo daqui.”

Carlos enfrentou situação de rua por quase uma década. Foi nas calçadas que aprendeu a arte de trançar a palha do coco e a escalar a árvore que lhe deu sustento. Hoje divide um cômodo com amigos e percorre a cidade com seu carrinho, vendendo produtos artesanais. “Aprendi a viver com o que tinha. E com o que posso fazer com as mãos.”

Espetáculo religioso mobiliza comunidade

A encenação da Via Sacra no Morro da Capelinha chegou à 52ª edição em 2024. Dirigido pelo dramaturgo Preto Rezende, o espetáculo reuniu cerca de 100 mil pessoas e contou com a atuação voluntária de aproximadamente 1.400 pessoas, entre atores, técnicos e figurantes, recrutados na própria comunidade.

Distribuído em 14 estações, o percurso retrata os últimos momentos de Jesus Cristo — da prisão à ressurreição — e emociona fiéis que pagam promessas, entoam cânticos e rezam por suas causas pessoais. Em meio à devoção, histórias como as de Matheus, José e Carlos se misturam à narrativa bíblica, revelando trajetórias marcadas por fé, trabalho e a esperança por uma vida mais digna.