“Em novembro, começa outro pico de dengue”, aponta diretora da Takeda Brasil
Representante da indústria farmacêutica japonesa que desenvolveu a primeira vacina eficaz contra a doença, a médica faz um alerta: com 80% das mortes pela arbovirose, o Brasil ainda vacina pouco, por causa da desinformação e das fake news
O Brasil bateu o recorde histórico de casos de dengue neste ano — foram mais de 6,5 milhões de pessoas infectadas. Isso representa, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 80% dos casos de dengue registrados em todo o mundo. Felizmente, 2024 também marcou o início da vacinação contra a dengue, que era esperada pela comunidade científica havia mais de 15 anos.
A Qdenga, fabricada pela farmacêutica japonesa Takeda, foi aprovada pelos órgãos reguladores de 24 países, com índice de 84% de proteção contra a doença. Em 2023, a Agência Nacional de Vigiância Sanitária (Anvisa) aprovou o imunizante para a população de 4 a 59 anos. A vacina é distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a faixa etária de 10 a 14 anos. Até o momento, 2,2 milhões de crianças e adolescentes foram imunizados com a primeira dose, mas apenas 537 mil retornaram para a segunda, após os 90 dias de intervalo entre as aplicações.
O Correio conversou com a médica e diretora executiva da Takeda Brasil, Vivian Lee, que falou sobre a situação da dengue no Brasil e sobre outros imunizantes que estão sendo estudados pela farmacêutica.
Qual o cenário da dengue, atualmente?
No ano passado, a Ásia era a região com mais casos de dengue do mundo, mas a OMS, neste ano, mostrou que o Brasil é responsável por 80% dos casos de dengue do mundo. São dados muito tristes para o país, a gente teve mais de 6,5 milhões de casos e 5.303 óbitos. Isso significa que, considerando o mesmo período do ano passado, tivemos mais de 40% de aumento de casos e atingimos cinco vezes o número de óbitos de 2023.
A que a senhora credita esse surto? As pessoas deixaram de se preocupar com a dengue?
Em 2021, a população achava que não existia mais dengue por causa da covid. Fizemos a mesma pesquisa com a Ipsos, ano passado, e já havia uma conscientização maior, com todos esses casos de dengue, e até epidemia em algumas cidades. Agora, 67% da população se lembra da dengue. Mas, existem muitos mitos.
Quais mitos?
Cerca de 42% da população pesquisada disse que a dengue ocorre mais no verão, mas não é mais assim. Outros 24% falaram que ocorre mais em populações de baixo nível socioeconômico, mas a dengue é democrática, atinge várias pessoas. O que a gente tem trabalhado é mostrar o quanto a dengue está presente no país, que pode ter casos graves. Mostrar também a questão de que, no Brasil, houve uma queda muito grande da cobertura vacinal em todas as vacinas.
A Qdenga também está com baixa cobertura?
Aproximadamente só 50% das doses entregues pela Takeda foram utilizadas. Das 5,5 milhões doses entregues, foram utilizadas somente 2,7 milhões. Em relação a doses administradas, a preocupação é com a segunda dose. Foram 2,2 milhões utilizadas na primeira dose e somente 537 mil na segunda. Não sabemos exatamente quantos desses já fecharam os três meses e ainda não retornaram, mas de qualquer forma, o número da segunda dose é bem menor. Ainda neste ano, vamos entregar mais 600 mil doses de Qdenga, que completam os 6,6 milhões do contrato com o Ministério da Saúde. Para o ano que vem, está prevista a disponibilização de 9 milhões de doses para o SUS. A nossa prioridade é o mercado público, mesmo fornecendo as vacinas também em clínicas particulares.
O primeiro lote da Qdenga foi uma doação ao Ministério da Saúde, e essas doses venceram em julho. O Ministério da Saúde chegou a recomendar que as doses fossem aplicadas em toda faixa etária permitida para evitar que se perdessem imunizantes. Chegaram a ser descartadas doses por não terem sido utilizadas?
Até onde a gente sabe, não. Todas as doses foram utilizadas. Nós acompanhamos isso porque, se não tiver sido usado, nós precisamos fazer o procedimento de descartar. Mas, somente as primeiras venceram “mais rápido” porque já tinham sido fabricadas havia algum tempo. Daqui para a frente, os lotes têm validade mais longa.
Há uma previsão de como será a vacinação contra a dengue, no ano que vem? Vai aumentar a faixa etária, por exemplo?
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse, recentemente, que eles vão avaliar, em setembro e outubro, os sorotipos da dengue no Brasil para ver como vai ser a campanha do ano que vem e qual a faixa etária. No mercado privado, a vacina já pode ser tomada por pessoas de 4 a 59 anos de idade. Mas, no setor público, a faixa etária é definida por onde há maior impacto epidemiológico, maior número de hospitalizações e, também, pelo orçamento disponível. Provavelmente, ela não será oferecida ainda para toda faixa etária permitida pela Anvisa para tomar a vacina.
O cenário da dengue no ano que vem pode ser pior?
Os dados são altos e a dengue está antecipando o período de pico. Há alguns anos, começava em abril ou maio e agora começou em fevereiro. Os especialistas acreditam que novembro deste ano já vai começar outro pico de dengue
A Qdenga é uma das respostas para essa alteração da doença no país?
A gente está com muito orgulho de ter incorporado a vacina. O Brasil é o primeiro país do mundo a ter incorporado a vacina da dengue em um sistema público de saúde. Recentemente, a OMS incluiu a Qdenga como vacina pré-qualificada, ou seja, que pode ser comprada por organizações, como a Organização das Nações Unidas (ONU), para fazer vacinação em larga escala, em várias regiões. Depois de 15 anos, trouxemos uma vacina quadrivalente (previne os quatro sorotipos da doença) que demonstrou alta eficácia e segurança.
A Qdenga precisa de duas doses para alcançar o máximo de eficácia. Alguns especialistas dizem que as vacinas de duas doses são mais suscetíveis a ter menor cobertura, pela necessidade de as pessoas voltarem aos postos de saúde. Chegou a ser estudada a possibilidade dessa vacina ser dose única?
Fizemos estudos com uma dose e duas doses e o que se observou, no nosso estudo de quatro anos e meio, foi que um mês depois da primeira dose já se observa uma boa eficácia, mais ou menos 80% de redução de casos de dengue. Porém, havia pessoas que não ficavam protegidas com o passar do tempo, então foi visto que era necessário aplicar a segunda dose três meses depois. Isso já foi avaliado antes e vimos que para a Qdenga a melhor maneira é com duas doses.
E será necessária a dose de reforço nos próximos anos?
Cerca de 20 mil crianças e adolescentes participaram do estudo para a Qdenga durante 4 anos e meio. Em algumas dessas, foram aplicadas uma terceira dose de reforço para saber se aumenta a eficácia. Essa parte do estudo ainda está em andamento. Devemos saber o resultado sobre o reforço em 2026. As pessoas também perguntam se a Qdenga não funciona para outras arboviroses, como zika e chikungunya, mas ela não tem proteção cruzada.
Atualmente, a produção da Qdenga é suficiente para atender aos brasileiros?
A gente tem, hoje, uma fábrica na Alemanha, que produz a Qdenga para o mundo, e estamos construindo outra para entregar no ano que vem. Em fevereiro deste ano, a Takeda fez contrato com a empresa indiana Biological e foram fabricadas 50 milhões de doses da Qdenga por ano para os países mais endêmicos do mundo. O Brasil sempre é prioridade, principalmente, porque tem 80% dos casos no mundo. Tudo isso é plano estratégico para que, até 2030, nós possamos fornecer 100 milhões de doses por ano da Qdenga. Aqui no Brasil, também estamos abertos para fazer transferência de tecnologia, seguimos as tratativas com a Fiocruz e o Ministério da Saúde.
E como estão essas tratativas de parceria?
Em junho, a Lei de Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) saiu e colocou o prazo de 26 de setembro para que Fiocruz, Butantan e outras instituições com projetos de transferência de tecnologia e produção local apresentem seus projetos. A Fiocruz tem muitos projetos e já adiantou que não deve dar tempo de apresentar a parceria com a Takeda até o fim deste mês. Então, eles estão pegando os dados da Takeda e planejando o projeto. A transferência de tecnologia é um contrato de 10 anos, como mostra a experiência com a Hemobras (estatal de insumos farmacêuticos inaugurada neste ano).
Ao que a senhora atribui a baixa vacinação contra a dengue?
É muito crítico, porque o Brasil era referência mundial com o Programa Nacional de Imunização (PNI). Desde 2016, a gente observa uma queda na cobertura vacinal, e, quando chegou a covid, o movimento antivacinas e de fake news aumentou muito. O Brasil é o segundo do mundo a usar WhatsApp e tecnologia. Nós, especialistas, entendemos que a grande causa da baixa cobertura vacinal vem de desinformação e dos mitos que citei sobre classe socioeconômica baixa e regiões do país.
Como a Takeda tem atuado para combater essas desinformações?
Temos um trabalho muito grande com a mídia para corrigir informações equivocadas sobre a Qdenga e, também, sobre vacinação. Criamos o site Conheça Dengue para conscientizar a população sobre a doença e a responsabilidade de cada um para preveni-la, além de falar da vacina. Juntando com a arte, estamos fazendo uma exposição itinerante chamada Sem Sombra de Dengue, que chegará a Brasília no próximo dia 20. São obras de arte que mostram que a dengue parece invisível, mas está aí.
O primeiro local de exposição foi no Japan House, em São Paulo, e foi um sucesso. Iniciamos por lá porque é onde a Takeda Brasil está. Depois, fomos para Dourados, em Mato Grosso do Sul, porque é a cidade que está participando de um estudo de caso da Qdenga. A população do município foi a primeira a tomar a vacina e está sendo acompanhada para verificar a eficácia ao longo dos anos.
Agora, chega a Brasília, que é a cidade brasileira que teve a maior taxa de concentração de casos de dengue. Neste momento, são mais de 9,7 mil casos a cada 100 mil habitantes. Na sequência, a exposição segue para Salvador, na Bahia, que foi o local do Nordeste a registrar epidemia da doença neste ano.
Mayara Souto – Correio Braziliense