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Sônia Maria de Jesus foi submetida a 40 anos de escravidão (situação análoga à escravidão) - (crédito: Reprodução/Fantástico)

Doméstica mantida em condições análogas à escravidão por desembargador mobiliza investigações

Durante quatro décadas, Sônia Maria de Jesus viveu em condições degradantes na casa do magistrado em Florianópolis

O Ministério Público Federal (MPF), entidades de direitos humanos e organizações não governamentais, além da família e da sociedade civil, aguardam que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) inclua na pauta deste ano o julgamento do caso de Sônia Maria de Jesus. Negra, com 51 anos, cega de um olho, surda, não oralizada e não alfabetizada em Libras ou português, Sônia foi resgatada em 2023 após trabalhar por 40 anos na casa do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis, em condições análogas à escravidão.

Sônia foi retirada da residência em junho de 2023 por auditores fiscais do trabalho. Contudo, em uma decisão controversa, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) revogou o resgate dois meses depois, alegando insuficiência de provas, e autorizou seu retorno à casa dos empregadores. Esse episódio marcou o primeiro “desresgate” registrado no combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil, conforme apontado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Em meio à repercussão, Jorge Luiz de Borba e sua esposa, Ana Cristina, ingressaram com um pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva de Sônia.

Operação de resgate e críticas ao pedido de paternidade

De acordo com um dos procuradores do MPT, as condições de Sônia no momento do resgate eram alarmantes. “Ela apresentava um mioma no útero, tinha apenas três dentes, e as raízes estavam infeccionadas. Foi necessário agir com urgência para garantir atendimento médico”, afirmou.

O pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva foi duramente criticado pelo procurador. “Como podem alegar que ela era tratada como filha, se nunca teve acesso à educação, nunca saiu de casa para socializar e sequer foi ensinada em Libras, mesmo morando a poucos metros de uma unidade da Apae?”, questionou.

Segundo ele, o desembargador, que é pai de quatro filhos – uma CEO, uma advogada, uma ginecologista e um engenheiro –, jamais deu a Sônia o mesmo tratamento. “Esse pedido de paternidade socioafetiva é uma tentativa de mascarar décadas de exploração”, concluiu.

Trâmites judiciais

O caso de Sônia está fragmentado em diversas instâncias judiciais. A questão criminal segue no STJ, sob responsabilidade do ministro Mauro Campbell Marques, enquanto as ações trabalhistas e o habeas corpus estão no STF, com o ministro André Mendonça. Já o pedido de paternidade socioafetiva tramita em Florianópolis.

Em setembro de 2023, a Defensoria Pública da União (DPU) solicitou urgência ao STF para julgar o habeas corpus em favor de Sônia. A Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou sobre o caso em novembro, e o STJ forneceu as informações solicitadas pelo Supremo. “A causa está pronta para julgamento”, afirmou a DPU, ressaltando que a demora agrava as violações aos direitos da vítima e enfraquece o combate ao trabalho escravo no Brasil.

Críticas à decisão de retorno

Para o defensor público William Charley, que participou do resgate de Sônia, a decisão que autorizou o retorno dela à casa dos Borba é emblemática das falhas no sistema judicial brasileiro. “Em qualquer outro contexto, como em casos de violência doméstica ou sequestro, a vítima não seria devolvida ao agressor. Essa decisão é inaceitável”, criticou.

A advogada de Sônia, Cecília Asperti, classificou como insustentável o argumento de vínculo familiar. “Sônia não os vê como família. Ela reconhece suas irmãs biológicas, Aparecida e Marlene, mas foi condicionada a servi-los, sem compreender a dinâmica de exploração em que viveu”, explicou.

Condições de vida e exploração

Segundo Xavier Plassat, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o resgate revelou evidências claras de trabalho escravo. “Sônia vivia em um quarto improvisado, sem documentos, salário ou acesso à educação. A narrativa de que era tratada como membro da família é uma tentativa de disfarçar a exploração”, afirmou. Plassat comparou a situação às estratégias usadas por fazendeiros na Amazônia para justificar o trabalho escravo.

Apelo por uma avaliação imparcial

O advogado penal Belisário dos Santos Jr. argumentou que o caso de Sônia não deveria ser decidido de forma monocrática. “Dada a complexidade e o estado de vulnerabilidade dela, é essencial que especialistas conduzam uma avaliação independente para determinar o ambiente mais adequado para seu bem-estar”, defendeu. Ele também sugeriu que o STF realize uma audiência pública para debater o futuro da vítima.

Dificuldades de contato com a família

Marta de Jesus, irmã de Sônia, relatou dificuldades para se comunicar com a vítima após o retorno à casa dos Borba. “Só conseguimos contato por meio dos advogados, e eles respondem quando querem. Nossa comunicação é limitada”, afirmou. Ela também destacou os obstáculos financeiros para visitar Sônia, agravados pelo curto prazo para organizar viagens.

Mobilização social

A campanha “Sônia Livre”, criada por familiares e apoiada por artistas e influenciadores, já conta com mais de 32 mil seguidores e busca pressionar as autoridades para libertar Sônia. Uma petição online, que já ultrapassa 10 mil assinaturas, reforça o apelo por justiça no caso.

Como denunciar trabalho escravo

O combate ao trabalho escravo no Brasil começa com denúncias, que podem ser feitas por meio do Disque 100, 190 ou diretamente ao Ministério Público do Trabalho (MPT) e outras instituições. Após o resgate, as vítimas recebem suporte médico, regularização de documentos e auxílio para reintegração social.

Para o procurador Thiago Lopes de Castro, coordenador do grupo Trabalho Doméstico do MPT, a reintegração social de vítimas de trabalho escravo doméstico é especialmente desafiadora. “Essas pessoas frequentemente não têm para onde ir, tornando o acolhimento social essencial para sua recuperação”, explicou.