Do sonho europeu ao preconceito diário: relatos de brasileiros em Portugal
Vivendo sob o peso do preconceito, brasileiros em Portugal relatam aumento de 142% nas queixas de xenofobia. Racismo, misoginia e intolerância linguística agravam o cenário.
“Você fala como no Brasil, né? Aqui é diferente.” A frase, dita em tom irônico por uma funcionária de atendimento em Lisboa, é apenas um dos inúmeros exemplos de como a xenofobia tem se infiltrado no cotidiano de brasileiros em Portugal. Com uma comunidade estimada em 360 mil pessoas, o país luso viu crescer em 142% as denúncias de discriminação. Por trás das estatísticas, pesam a herança colonial, o racismo estrutural, o preconceito contra o modo de falar e, especialmente no caso das mulheres, a misoginia velada.
Foto por Maurício Cancilieri |DW
Por mais de uma década vivendo em Portugal, a brasileira Priscila Valadão acumulou experiências dolorosas — e reveladoras. “Só descobri o que é ser uma pessoa racializada aqui”, afirma. Entre os episódios mais marcantes, ela relembra ter sido chamada de “macaca” e “puta” e ter ouvido que sua certidão de naturalização era “de plástico”.
Em um dos momentos mais traumáticos, Priscila conta que caminhava por uma rua quando um homem português, ao perceber seu sotaque, gritou “volta para sua terra” e a golpeou com uma bengala. “Vivi, trabalhei e criei meus filhos aqui, mas não me sinto em casa. Percebi que nunca vou ter direito a ser como os portugueses.”
Casos como o de Priscila refletem uma realidade crescente entre imigrantes brasileiros em Portugal. De acordo com a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, foram registradas 109 denúncias formais de xenofobia contra brasileiros em 2021 — alta de 142% em comparação com 2018, quando haviam sido contabilizadas 45 ocorrências.
A hostilidade se manifesta de forma variada: vai desde dificuldades em alugar imóveis, conseguir empregos ou acessar serviços públicos, até exigências para que brasileiros “falem inglês” em vez de português, além de insultos e agressões físicas.
Crescimento migratório e tensões sociais
O número de estrangeiros em Portugal aumentou de forma expressiva nos últimos anos. Em 2015, eram pouco mais de 380 mil. Já em 2023, ultrapassaram a marca de 1 milhão, representando cerca de 10% da população portuguesa. Os brasileiros formam a principal comunidade imigrante, com cerca de 360 mil residentes, segundo o Ministério das Relações Exteriores.
Apesar da presença consolidada, o sentimento de rejeição também cresce. Pesquisa da Fundação Francisco Manuel dos Santos revela que 38% dos portugueses enxergam desvantagens na presença de brasileiros, e 51% defendem a redução na entrada desse grupo no país.
Esse sentimento tem se traduzido também em barreiras na chegada: entre 2023 e 2024, o número de brasileiros impedidos de embarcar rumo a Portugal cresceu 700%, passando de 179 para 1.470, conforme aponta o Relatório Anual de Segurança Interna.
“Concorrência” e herança colonial
Especialistas indicam que parte da hostilidade decorre de uma percepção de ameaça econômica. “De forma geral, a sociedade portuguesa está mais intolerante face aos imigrantes em geral e aos brasileiros em particular”, analisa Mariana Machado, pesquisadora do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Ispa). “Há uma percepção de que os brasileiros disputam vagas de trabalho qualificado e acesso a benefícios sociais.”
Segundo Machado, a raiz da discriminação está também ligada a um imaginário colonial ainda presente. “Existe um mito ‘lusotropicalista’ que romantiza a miscigenação entre portugueses, indígenas e negros como algo integrador. Na prática, esse discurso invisibiliza violações históricas, como a escravidão e a violência contra mulheres brasileiras.”
Esse aspecto de gênero, aliás, reforça a vulnerabilidade de imigrantes brasileiras, muitas vezes hipersexualizadas ou associadas erroneamente à prostituição.
Racismo e machismo no ambiente de trabalho
Foto por Maurício Cancilieri |DW
A pedagoga Larissa dos Santos relata ter sido alvo de ofensas graves por parte de sua supervisora em um bar em Lisboa. “Ela me disse que eu deveria me portar como uma escravinha. Depois, afirmou que, se pudesse, me amarraria em um tronco e me daria chibatadas para aprender a me comportar. Passei a ser perseguida até pedir demissão.”
Entre brasileiros negros, os relatos de discriminação se multiplicam. “Uma pessoa branca pode sofrer xenofobia. Uma pessoa negra sofre também o racismo. É a perpetuação de uma hierarquia racial”, resume Ana Paula Costa, presidente da Casa do Brasil de Lisboa.
A socióloga Jéssica Ribeiro, por sua vez, passou a alterar sua forma de falar para evitar ser corrigida ou hostilizada. “A pronúncia sai automaticamente diferente. É uma defesa inconsciente. Já me disseram que falava errado e, mesmo quando uso palavras conhecidas, fazem questão de não me entender. É como se a nossa língua fosse inferior.”
Extrema direita e discurso anti-imigrante
O avanço da extrema direita em Portugal tem aprofundado a retórica contra migrantes. O partido Chega!, que nas eleições legislativas de 2024 elegeu 48 parlamentares, tornou-se a terceira maior força do Parlamento, com forte apelo xenofóbico.
“Importaram uma retórica política que não existia aqui”, afirma Mariana Machado. “Migrantes são usados como bodes expiatórios, com reforço de estereótipos ligados à criminalidade ou à hipersexualização.”
Em 2020, o líder do Chega!, André Ventura, teve uma declaração amplamente criticada ao sugerir, em rede social, que a deputada Joacine Katar Moreira, do partido Livre, fosse deportada para Guiné-Bissau após defender a devolução de obras de arte coloniais.
Impunidade e reação social
Apesar das denúncias, condenações por racismo e xenofobia ainda são raras em Portugal. A legislação atual — Lei n.º 93/2017 — prevê multa em caso de condenação. No Brasil, a legislação é mais rigorosa, considerando o racismo crime inafiançável, com penas que podem chegar a cinco anos de prisão.
Foto por Maurício Cancilieri |DW
Carolina Vieira, fundadora da Plataforma Geni, que orienta vítimas de xenofobia, defende a importância da denúncia. “Sem registros, não há dados. E sem dados, não há pressão para que algo mude.” No entanto, ela mesma relata que nenhuma das três queixas que registrou teve andamento.
Segundo levantamento da Casa do Brasil, 76% dos brasileiros que sofreram discurso de ódio em Portugal não denunciaram. Entre os motivos estão medo, sensação de impunidade, custo financeiro e falta de acolhimento institucional.
Em resposta à fragilidade legal, movimentos sociais articulam uma Iniciativa Legislativa Cidadã que propõe reformular o Código Penal para que crimes de ódio por origem e raça deixem de ser considerados apenas infrações administrativas. “É imprescindível uma reformulação jurídica que trate essas condutas como crimes, garantindo proteção efetiva aos direitos fundamentais”, diz o texto da proposta.
Com Jéssica Moura | Maurício Cancilieri |