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Criança devolvida, pai arrependido: o drama das adoções que dão errado

O destino de Larissa* começou a ser traçado quando os pais biológicos, usuários de crack, a abandonaram ainda bebê no meio de uma praça em Palmas de Monte Alto, na Bahia.

A menina, hoje com sete anos, foi rejeitada por três vezes em processos de adoção até chegar aos pais, em setembro de 2016.

Levada a Fortaleza em 2014 por um casal cearense que pretendia adotá-la, ela acabou sendo devolvida sob justificativa de que tinha temperamento difícil e era insubordinada, o que dificultava a convivência. A mesma alegação veio nas duas tentativas seguintes de adoção.

“No começo foi bem difícil, minha filha me desafiava todos os dias. Assustada e desconfiada, era como se me testasse para ver se eu realmente a queria. Isso refletia nas relações com as pessoas e até no próprio sono, que era agitado”, relata a mãe adotiva, Rutilene de Sousa, de 45 anos.

A história de Larissa é mais comum do que se imagina. Houve 172 registros nos últimos cinco anos – e o número inclui apenas os 11 Estados que forneceram dados à reportagem.

O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) registra cerca de 4,7 mil crianças e adolescentes disponíveis para adoção no país.

Como crianças e adolescentes, adultos também sofrem nessas situações. O servidor público Roberto*, de 44 anos, desistiu de uma adoção em 2014.

“Depois da devolução você se estraçalha, se sente o último dos homens. Literalmente você rola no chão de dor, não desejo isso para ninguém”, conta Roberto.

O sonho da paternidade começou a se desfazer logo no começo da guarda provisória da criança, que tinha dois anos à época.

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“O cotidiano com a criança é muito distante do sonho. Comecei a me cansar física e emocionalmente quando meu companheiro começou a desistir. Fui entrando em depressão e concluí que não seria bom para a criança ficar comigo, mas foi uma decisão muito difícil”, diz.

Roberto e o companheiro entraram na fila de adoção em 2011. Foram três anos de espera até receberam a criança, com quem conviveram por três meses.

“Hoje não quero mais adotar. Foi muito sofrimento, achei que iria dar conta mas não dei. Isso foi mexeu muito com minha vida, minha crença, perspectiva de amor. Não sei se a gente se recupera disso. A gente aprende a conviver”, desabafa.

Reconstrução

Como o casal que não conseguiu levar a adoção adiante, a menina Larissa também refaz sua vida. Leva uma vida tranquila, com sessões semanais de terapia.

No começo, passou por diversas crises, que se manifestavam em sintomas como confusão de identidade e dificuldade de concentração.

“Tudo era não. Se dizíamos que era hora do banho, ela dizia não. Era inquieta no colégio, não prestava atenção em nada, brigava com colegas e professores. Mas hoje as coisas estão se ajustando, a fase de testes passou e ela começa a perceber que desta vez a relação é para sempre”, diz a mãe.

Larissa só permaneceu em Fortaleza após a primeira devolução por intervenção de uma ONG, a Acalanto, que ajuda famílias nos processos de adoção.

Rutilene de Sousa e filha
A servidora pública Rutilene de Sousa com a filha, que passou por devoluções em processos anteriores de adoção

Como a cidade de origem de Larissa não contava com psicólogos, a entidade recorreu ao Judiciário para mantê-la na capital cearense, onde poderia ser acompanhada por uma equipe multidisciplinar.

Rutilene é voluntária da ONG e conheceu a filha ao atuar pela entidade.

Desistências

Desistir de uma adoção só é permitido durante o estágio de convivência, fase que tem duração mínima de 30 dias e prazo fixado pela Justiça caso a caso – um projeto no Senado quer determinar tempo máximo de um ano para essa fase.

Após conclusão dos procedimentos de adoção, contudo, não há previsão de “devolução”. A adoção é medida irrevogável, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que atribui ao adotado a condição de filho. Uma eventual “devolução” nesse caso poderia ser enquadrada como o crime de abandono de incapaz.

Embora a desistência no estágio de convivência seja direito dos pretendentes, pois está prevista no ECA, alguns Estados têm tomado medidas para minimizar os impactos desses casos.

Em Porto Velho (RO), por exemplo, o Juizado da Infância e Juventude fez acordo com pais desistentes para que subsidiassem um ano de psicoterapia para as crianças.

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As motivações que levam à devolução passam por questões subjetivas tanto dos pais como das crianças, que costumam carregar histórias de sofrimento, diz a assistente social e doutora em Serviço Social Angélica Gomes.

“As famílias muitas vezes não estão preparadas (para a adoção), e os profissionais têm dificuldade de lidar com essa realidade. E no auge do conflito as pessoas pensam na devolução como solução imediata”, diz.

Gomes diz que é preciso trabalhar o histórico de sofrimento de pais e filhos no processo de construção da família, evitando tanto o romantismo quanto o desalento.

“As dores se apresentam, as feridas se abrem e devem se abrir, pois precisam ser cuidadas. A única forma de cuidar é se elas aparecem. Não trabalho com a visão romântica da adoção e nem com a visão fadada a não dar certo. É uma relação humana, e os conflitos estão presentes em toda relação humana”, afirma.

Para a mãe de Larissa, o apoio de psicólogos foi fundamental para que ela compreendesse melhor a filha e não desistisse da adoção.

“No começo é tudo maravilhoso, você vai ao abrigo aos fins de semana e só. Quando a criança vem para sua casa é outra história. Entrei em depressão, entendi por que os outros casais tinham desistido de adotá-la e desacreditei que pudesse ser mãe. Se não tido tivesse apoio profissional com certeza não teria chegado até aqui.”

Para a psicóloga Soraya Pereira, presidente da ONG Aconchego e que trabalha com adoção há 25 anos, a capacitação dos profissionais para essas situações deveria ser prioridade nessa área.

“A idealização pelos pretendentes é uma coisa muito forte, pois uma coisa é o filho idealizado e outra é o filho real. Essa idealização precisa ser trabalhada, caso contrário teremos sempre um problema sério. Tento encaixar meu filho em um modelo que quero, mas que ele nunca será, porque para encaixá-lo em meu modelo muitas vezes terei que ‘mutilar’ a criança”, explica.

* Nomes fictícios – pessoas com nomes marcados com asterisco pediram para não serem identificadas. As informações são da BBC e os Direito de imagem de MARÍLIA CAMELO/BBC BRASIL