Como um antigo esconderijo de criminosos se tornou exemplo de transformação social no Recife
Na foto acima, no centro da imagem, a Ilha de Deus, no Recife, em registro de 2012, durante processo de urbanização da área antes tomada por palafitas
Sentada na porta de casa diante de uma montanha de conchas, Maria Cláudia da Silva, de 25 anos, separa com agilidade o sururu (molusco típico do Nordeste brasileiro) da sujeira que assola o mangue.
A catadora repete a atividade que a mãe, a avó e centenas de mulheres da Ilha de Deus, no Recife, fazem há pelo menos 50 anos.
Da comunidade que nasceu da ocupação de um manguezal na confluência de três rios (Pina, Jordão e Tejipió), o alimento segue para abastecer supermercados e restaurantes da cidade.
O trabalho é duro – “dá dor nas costas” e até “doença nas mãos”, segundo a moradora – e rende apenas R$ 150 por semana. “Isso se catar uns oito baldes por dia.”
Mas Silva não reclama. Diz que a situação já foi muito pior, e aponta para os três filhos, de dez, oito e quatro anos.
“Na idade deles, eu não podia brincar na rua porque era perigoso. Quando nem imaginava tinha um tiroteio. A gente morava em palafita. Para ir à escola, precisava tirar o sapato e atravessar a lama.”
‘Ilha sem Deus’
A trabalhadora se refere a um período em que a vila de pescadores, localizada no maior parque de manguezais em área urbana do país, era mais conhecida como “Ilha sem Deus”.
Naquela época, criminosos aproveitavam o isolamento e o abandono do lugar para se esconder. Logo, o tráfico de drogas se instalou. Na fase mais crítica, entre as décadas de 1980 e 1990, a comunidade chegou a registrar um homicídio por semana.
A situação começou a melhorar à base de conscientização política e organização. Com a ajuda de missionários religiosos, moradores passaram a cobrar atenção do poder público e serviços básicos, como água e iluminação.
Em 1986, construíram uma ponte de madeira ligando pela primeira vez a ilha ao “resto do mundo”. Antes, o acesso só era possível de barco.
A passagem de 216 metros de extensão foi refeita em concreto em 2009, em obra do governo do Estado. A ponte Vitória das Mulheres, referência à forte liderança feminina na comunidade, também é um marco da urbanização da Ilha de Deus.
Hoje, as palafitas da ilha deram lugar a casas de alvenaria, as ruas de lama receberam asfalto e saneamento. Já a violência tem recuado diante de ações de transformação social, que vão de revitalização ambiental a programas de educação, comunicação e poupança comunitária.
Além de propiciar condições de vida mais dignas, os projetos inseriram a ilha entre os pontos turísticos da capital, com direito a albergue e rota exclusiva de catamarã.
Apesar de escassa, pesca tradicional ainda é alternativa de renda para moradores da região
Histórias do passado
Há quatro anos, nenhum homicídio é registrado na Ilha de Deus, segundo a Polícia Militar de Pernambuco.
“A violência nunca foi uma índole da comunidade, originalmente uma colônia de pescadores e catadoras de marisco”, enfatiza o comunicador Edson Cruz, de 43 anos.
Um dos fundadores da ONG Ação Comunitária Caranguejo Uçá, que atua na Ilha de Deus desde 2002, ele associa os problemas sociais ao desequilíbrio ambiental e à omissão do Estado.
“Diz um ditado popular que o ambiente faz o homem. Se o ambiente é degradado, o ser humano também estará”, afirma o ativista, conhecido como Edson Fly (acrônimo de First Love Yourself, ou ame-se em primeiro lugar, em inglês).
Fly chegou à ilha ainda bebê, aos seis meses de idade. “Meus pais vieram morar aqui para me curar de uma anemia aguda, tal era a disponibilidade de alimentos nutritivos”, conta.
“Quando eu era pequeno, tinha peixe que não acabava mais, de toda variedade: tainha, mero, carapeba, manjuba. Tirava camarão de monte, brincava com cavalos-marinhos. Até boto entrava aqui”, reforça Josias Pedro da Silva, de 53 anos, outro morador da vila.
O cenário idílico da infância e adolescência de Fly e Silva mudou radicalmente a partir de 1983. Uma grande mortandade de peixes deixou a comunidade pesqueira de redes vazias, à beira da fome.
“Foi quando fábricas e usinas passaram a jogar dejetos nos rios, comprometendo nossa fonte de sobrevivência. Desde então ficamos por muito tempo à mercê de abusos de bandidos e policiais, que só entravam aqui de maneira agressiva. E a mídia reproduzia estigmas sem conhecer nossa realidade, éramos chamados de meninos de lama. O crime prolifera onde não há perspectivas”, diz Fly.
O morador se emociona ao citar amigos perdidos na guerra do tráfico. “Muitas crianças e jovens foram mesmo aliciados, mas outros pais de família apanhavam (da polícia) na rua só por não estarem com documento na mão”, lamenta.
Se escapou da violência na Ilha de Deus, Fly não teve a mesma sorte do outro lado da ponte. Prestes a realizar o sonho de se tornar jogador profissional de futebol, em maio de 1994, foi baleado no quadril durante uma festa na região metropolitana.
“Mais do que 20 dias em coma, o que doeu foi a imprensa ter dito que eu fazia parte de uma ‘galera’, apenas por morar na Ilha de Deus. Decidi ser jornalista para mudar essa visão”, recorda o comunicador, que agora usa a Rádio Comunitária Boca da Ilha e a TV Mocambo (via internet e emissora pública), além de outras iniciativas de arte e cultura, para mobilizar os jovens locais e ajudá-los a desenvolver suas capacidades.
Mudando a realidade
“Pouco a pouco e com muita luta, acabou-se a imagem de ‘Cidade de Deus’ do mangue”, constata Josuel Oliveira, de 41 anos, morador da Vila da Imbiribeira, em frente à ilha, e voluntário de projetos sociais na comunidade.
Segundo ele, policiais, antes encarados com pavor, atualmente são recebidos com simpatia dos pais e abraços das crianças que fazem parte do projeto “Patrulheiro Mirim”.
Parceria entre a equipe de polícia comunitária local e a comunidade, o programa atende cem alunos de oito a 13 anos. São oferecidas oficinas semanais sobre cidadania, relações interpessoais, bullying, entre outros temas. Periodicamente, os “patrulheiros” também têm aulas práticas em cinemas, parques e museus.
“Nosso objetivo é chegar aos jovens antes dos traficantes, com educação e oportunidades. Preferimos prevenir do que prender ou fazer isolamento de cadáver. Também gostamos mais de receber um ‘bom dia’ do que sermos vistos apenas como repressores”, diz o soldado Jozivan Albuquerque, de 41 anos, um dos cinco integrantes do batalhão que tocam o projeto.
Luta ambiental
Paralelamente aos esforços para manter crianças e adolescentes longe do crime, a Ilha de Deus trava uma batalha constante para preservar o manguezal de onde a comunidade tira o sustento.
Quase todos os dias, pescadores fazem uma faxina a pé e de barco para remover o lixo. Crianças, idosos e adultos também participam de um projeto que visa cultivar e replantar 20 mil mudas de espécies do mangue até 2018.
A iniciativa, batizada de “Semear e Colher”, conta com recursos do governo alemão. “Acabamos de voltar de uma temporada de dois meses na Alemanha com a peça de teatro Rios Mortos – Mangue Sem Vida, Povo com Fome, que representa um pedido de socorro”, conta Josenilda da Silva, a Nalvinha da Ilha, presidente do Centro Educacional Popular Saber Viver.
A ONG foi fundada há 33 anos pela comunidade, sob liderança de Dona Beró (Berenice da Silva), de 79 anos. Uma das moradoras mais antigas e apelidada de “mãe da ilha”, ela é a memória viva do lugar.
Conhece a todos, entende da pesca e do trato dos mariscos e ainda faz versos. “A natureza é bela, meu bem. Se você soubesse, cuidava dela também. O aquecimento da Terra já chegou à destruição. Vamos limpar e plantar”, recita ela, em ritmo de ciranda.
A voz de Dona Beró ecoa como mantra na comunidade. Para os ilhéus, cuidar do mangue é garantia de alimento e trabalho. Entre os desafios ambientais está a destinação de toneladas de cascas de mariscos que antes forravam as ruas de lama da ilha e hoje se acumulam todo dia na beira da maré.
“É um exercício de enxugar gelo”, define o diretor de limpeza urbana do Recife, Bruno Cabral. Segundo ele, a prefeitura trabalha com outras entidades para transportar os resíduos até uma cooperativa que possa transformá-los em adubo. Enquanto a ideia não se concretiza, parte do material vira matéria-prima para o artesanato local.
Sobre o combate à poluição, Cabral diz que a prefeitura gasta cerca de R$ 100 mil por mês com mutirões de limpeza, mas que há apenas um ecobarco para fazer a varredura dos rios em toda a cidade.
Os moradores também cobram a conclusão, pelo governo do Estado, de um projeto iniciado em 2007, que pretendia tornar a comunidade um modelo de urbanização em Pernambuco. Quase dez anos e R$ 80 milhões depois, falta entregar uma unidade de beneficiamento de pescado e 20 de 369 casas reivindicadas.
“Ainda necessitamos de nossa creche de volta com urgência, para as mães poderem trabalhar tranquilas”, diz Nalvinha.
Segundo Edna Diniz, gerente de articulação de projetos da Secretaria Estadual de Planejamento, a conclusão dos espaços está atrasada em razão do aperto atual nos cofres públicos.
“Vamos entregar as casas até o fim deste ano e a unidade de beneficiamento até fevereiro de 2017. Estamos em conversa com a prefeitura e o Ministério da Educação para retomar a creche. Por último, faremos o campo de futebol previsto”, diz.
Poupança comunitária
Ana Mirtes Ferreira, de 29 anos, lembra que nenhuma das melhorias na comunidade veio sem luta. “Todas as mulheres mais velhas, como minha mãe e minha avó, precisaram protestar e parar avenidas para que o poder público olhasse pra nós”, conta.
Ferreira é uma das responsáveis pelo projeto de poupança comunitária da ilha, que também deu origem a um banco comunitário e hoje envolve cerca de cem moradores.
“Estimulamos o hábito de poupar, em vez de fazer dívida em carnê e cartão. Não tem valor fixo nem obrigatório”, explica.
A conta que reúne as economias dos moradores é aberta na Caixa Econômica Federal em nome de pelo menos três tesoureiras, que precisam ir juntas ao banco para assinar a papelada quando é preciso fazer um depósito ou saque.
“Por isso, pedimos que os poupadores avisem com três dias de antecedência quando querem o dinheiro”, diz Ferreira.
No caso do banco, é possível tomar empréstimos com juros de apenas 1% sobre o valor total solicitado.
“No início a ideia era viabilizar a troca das palafitas por casas de alvenaria. Como o governo assumiu isso, passamos a poupar para colocar cerâmica, comprar objetos e para outros sonhos, como fazer uma faculdade ou viajar.”
‘Milagre diário’
Maior riqueza da Ilha de Deus, o sururu ainda responde pela renda de quase toda a comunidade. A coleta e cata do marisco envolvem homens e mulheres de todas as gerações.
O pescador Everson Ramos, de 16 anos, levanta com os primeiros raios de sol em busca do “milagre diário” da multiplicação do alimento no mangue. “Chego a tirar dez quilos cada vez que entro no rio”, conta.
A atividade exige força e paciência. Primeiro, para retirar os mariscos agarrados à lama e chacoalhá-los em engradados chamados de galés. Depois, para limpar e tirar a carne de cada um, para só então ferver e peneirar.
Nas portas das casas, famílias inteiras, inclusive crianças mais velhas, se reúnem para a catação. “Todo mundo aqui vive disso”, diz Cleidieli Gomes, de 22 anos, que nasceu na comunidade e divide com os pais, dois irmãos, a filha e um sobrinho uma casa de dois quartos e um banheiro.
“Pelo menos fome ninguém passa. Vai na maré, pega um peixe, um siri e come. Meu filho tomou caldo de caranguejo com três meses”, afirma a irmã de Cleidieli, Gleicykelly Gomes, de 25 anos.
A segunda atividade mais relevante para subsistência dos moradores é a produção de camarão, que não é encontrado mais de forma natural naquelas águas. Ao todo, existem 98 viveiros na Ilha de Deus, a maioria implantada há pelo menos 30 anos.
É o caso dos dois tanques do pescador Josias da Silva, de onde retira a cada três meses 600 quilos do crustáceo, que são repassados para a comercialização pela comunidade.
Turismo
Mais recentemente, o turismo passou a despontar como alternativa econômica. Um albergue comunitário instalado na sede da Saber Viver atrai gente do mundo inteiro.
A proposta é oferecer hospedagem de baixo custo, incluindo quartos com ar-condicionado, refeitório e horta orgânica à disposição, em troca de trabalho voluntário. O hóspede oferece o que souber fazer. O preço varia com essa troca, mas a base de cálculo é a partir de R$ 30 a diária.
Recém-formada em Ciência Política, a alemã Hannah Porada, de 23 anos, procurava exatamente esse tipo de turismo. “Me formei, mas ainda não tenho plano certo de vida. É muito importante ter experiência real. Como já havia morado em Portugal e sabia a língua, decidi vir pra cá. A minha impressão é bem diferente do que tinha ouvido falar. As pessoas são muito amáveis”, conta.
A atividade turística foi reforçada com a criação, em setembro, de uma nova rota de passeio de catamarã, dedicada exclusivamente à ilha.
Durante cerca de duas horas, recifenses e turistas podem conhecer de perto o local de onde sai o sururu, aprender sobre o mangue e a ilha que se tornou exemplo para a cidade.