Cinco motivos que levaram o Rio à pior crise de segurança em mais de uma década
As últimas semanas no Rio de Janeiro foram marcadas por uma sucessão de episódios de violência que expôs a grave crise que atinge a segurança pública na cidade.
Para especialistas ouvidos pela BBC Brasil, a cidade vive a maior crise de segurança pública em mais de uma década, com indicadores de violência se aproximando do patamar dos anos anteriores às UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras), que começaram a ser estabelecidas em 2008.
“Como passamos por alguns anos de otimismo, o golpe é muito maior”, diz ele, referindo-se à melhora nos indicadores de violência nos anos posteriores à instalação das UPPs e anteriores à Copa do Mundo. “Não apenas não conseguimos chegar aonde queríamos, mas estamos caminhando para uma situação ainda pior”, considera Cano.
Nesta semana, o governo federal anunciou que enviará reforços ao Rio depois de a cidade ter parado na terça-feira, quando bandidos atearam fogo a nove ônibus e dois caminhões em algumas das principais vias de acesso à cidade – represália de facções criminosas contra operações policiais em uma comunidade.
O Ministério da Justiça prometera mandar cem homens da Força Nacional de Segurança e agora diz que o número pode chegar a 300, após críticas de que o aceno havia sido por demais tímido.
A recessão, a grave crise financeira do Estado do Rio, a escassez de recursos para a polícia e o desemprego estão entre os fatores que contribuem para a atual crise de segurança.
Para o antropólogo e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares, o quadro atual resulta da intensificação de práticas e circunstâncias que estão em curso há muito tempo.
“O padrão tem sido o mesmo: confronto com ‘o tráfico’, adotando incursões bélicas às favelas, que matam inocentes, suspeitos e até mesmo policiais. A velha ‘política’ da conhecida – e derrotada – guerra às drogas”, lamenta.
Entenda quais são os principais fatores estão por trás da atual crise de segurança no Rio.
Deterioração das UPPs
Nos últimos cinco anos, o número de tiroteios em comunidades com UPPs aumentou 13.746%, de acordo com um estudo feito pela própria Polícia Militar. O número de confrontos nas favelas com UPPs passou de 13, em 2011, para 1.555, em 2016. As trocas de tiros se intensificaram nas últimas semanas, notadamente no Complexo do Alemão, onde a PM atua para instalar uma cabine blindada numa das principais vias da comunidade Nova Brasília.
O entusiasmo em torno da política das UPPs foi inicialmente justificado por uma queda vertiginosa nos índices de criminalidade nas comunidades. Com o tempo e a expansão do programa para comunidades maiores e mais complexas – como a Rocinha e o próprio Complexo da Maré -, a situação começou a se deteriorar.
Um dos problemas, segundo a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Cândido Mendes (Cesec), foi apostar primordialmente nas UPPs, que tinham foco claro na capital e nunca foram uma política de segurança pública para todo o Estado – das 38 UPPs implantadas, apenas uma, no Complexo da Mangueirinha, fica fora dos limites do município, na Baixada Fluminense.
“Quando a política das UPPs entrou em falência, o Estado não conseguiu se movimentar rapidamente para se reestruturar”, diz Lemgruber.
Para ela, os episódios violentos que a cidade tem presenciado são “reações pontuais para apagar incêndios”, levando o Rio de volta à situação de “anos atrás”.
“Isso não é uma política de segurança pública. Isso são ações violentas que não levam a lugar nenhum. Temos visto uma média de quatro mortes provocadas pela polícia por dia, e mais de 60 policiais já morreram no Rio só neste ano. Isso seria um escândalo em qualquer parte do mundo. Aqui, faz parte da paisagem.”
Para Ignacio Cano, pesquisador da Uerj, o Estado se ancorou nos bons resultados iniciais das UPPs sem que as políticas fossem “ampliadas, corrigidas, modificadas ou complementadas por novas políticas”.
“Os gestores se limitaram a uma expansão quase automática das UPPs e do pagamento de bonificações a policias”, considera Cano. Ele diz que as UPPs viraram o “fetiche” da segurança pública no Rio; convencionou-se atribuir a elas tudo de bom que acontecia, ou tomar todos os problemas como indicativos de seu fracasso. A situação, porém, envolve muitos outros fatores.
Crise financeira no estado e na polícia
O cenário de recessão e grave crise financeira no Estado do Rio tem castigado servidores públicos estaduais de vários setores – e não é diferente com a Polícia Militar. Turistas desavisados que chegavam ao aeroporto do Galeão para a Olimpíada no ano passado foram recebidos por um grupo de policiais em protesto empunhando bandeiras dando as boas vindas ao “inferno” – “welcome to hell”, dizia em inglês, avisando que policiais e bombeiros não estavam recebendo seus salários, e quem chegasse ao Rio não estaria seguro.
De lá para cá, a situação se tornou mais crítica. Devido à crise, policiais ainda não receberam 13º salário nem as bonificações a que têm direito. Maria Isabel Couto, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/DAPP), diz que a escassez de recursos vem prejudicando a infraestrutura e as condições de trabalho da polícia, aumentando a situação de vulnerabilidade.
“O aumento dos indicadores de violência significa que os policiais na ponta estão sendo colocados sob muito mais pressão – isso enquanto o Estado passa por uma crise financeira violentíssima que gera ansiedade sobre se vão receber salários, e boatos de que o Estado não tem dinheiro para comprar gasolina, de que as viaturas estão sucateadas, de que coletes a prova de bala estão vencidos e armas estão sem manutenção. Tudo isso gera um cenário de muito estresse para um funcionário cuja função é ir para a rua e proteger a população.”
Neste ano, mais de 60 policiais já foram mortos no Rio. “A sociedade precisa responsabilizar o policial quando ele precisar ser responsabilizado, mas também precisa entender que policiais estão sob extrema pressão e profundo estresse, e que eles também são vítimas desse processo.”
Expansão da mancha de criminalidade
A década entre 2006 e 2016 foi marcada por um período de otimismo que teve seu ápice em 2011, ano que apresentou os melhores indicadores de segurança. Em seguida, a situação começou a se deteriorar. Ao fim do período, a violência não voltou ao que era; mas se reconfigurou e se espalhou geograficamente pelo Estado.
Uma pesquisa realizada pela FGV/DAPP com base nos dados compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) mostrou que, quando a violência voltou a aumentar, ela se distribuiu pelo Estado.
“Antes, a capital sempre acumulava os maiores números de violência”, diz Maria Isabel Couto, uma das autoras da pesquisa. Isso foi mudando ao longo dos últimos anos, com o aumento do crime no interior do Estado e na Baixada Fluminense (região metropolitana do Rio, já fora das fronteiras do município).
“A concentração na capital significava que, do ponto de vista da segurança pública, os esforços e o contingente também podiam ser concentrados. Hoje, a violência está muito mais dispersa, e é preciso distribuir esforços, recursos e adotar estratégias mais complexas”, diz Couto.
A distribuição criminal pode ser atribuída, em parte, à fuga de traficantes de áreas ocupadas por UPPs para consolidar o domínio e outros territórios. Mas Couto considera também que o descrédito das UPPs teve um importante papel. “As UPPs trouxeram a sensação de que o Rio ia finalmente dar conta do problema do tráfico. Os primeiros episódios de violência fizeram essa ideia desmantelar e mostraram que as UPPs não eram infalíveis.”
Fortalecimento de facções criminosas
Se na fase inicial as UPPs pareciam estar sufocando a atuação de criminosos em algumas favelas, as disputas de territórios vistas recentemente mostram que os danos causados não foram permanentes. A disputa de territórios tem sido constante no Rio, e facções criminosas aproveitam a crise para agir de forma mais agressiva.
“A criminalidade percebe que há um descontrole na segurança pública, que não há rumo, orientação”, diz Julita Lemgruber.
“Você acha que a criminalidade não percebe que o Rio está à deriva, com um ex-governador preso, o mandato do atual correndo risco (referência a acusações de corrupção contra o governador Luiz Fernando Pezão), um Tribunal de Contas que está na cadeia? É uma situação de falta de legitimidade do Estado, um Estado que está um pouco à deriva, e a criminalidade percebe isso claramente”, argumenta Lemgruber.
Mais do que isso, a desigualdade social e a falta de oportunidade para jovens nas comunidades continua a contribuir para atrair meninos e adolescentes para o tráfico e munir as facções de recursos humanos.
Sem outra porta de saída que ofereça outras oportunidades, jovens pobres de comunidades idem são atraídos pelos benefícios “sedutores” do tráfico – que não se reduzem a bens materiais, diz o antropólogo e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares. “Mais do que isso, estão em jogo acolhimento, reconhecimento, valorização e pertencimento”, afirma.
“É possível disputar menino a menino com a fonte de recrutamento criminosa. Disputar significa oferecer pelo menos os mesmos benefícios, com sinal invertido, evidentemente”, considera Soares, dando o exemplo do campo de políticas culturais, que tem muitas experiências bem sucedidas no Brasil e no mundo.
Maria Isabel Couto, da FGV/DAPP, diz que a falta de uma política nacional de segurança também ajuda a fortalecer as facções – que substituíram a disputa de uma ou outra favela por disputas mais amplas e ambiciosas.
“A gestão do crime não respeita fronteiras”, diz Maria Isabel Couto. “As facções estão se comunicando, criando parcerias, buscando expandir sua influência e suas rotas. Há uma clara disputa nacional e internacional por territórios.”
Em contraposição, ela diz ser urgente elaborar uma política nacional de segurança pública. “O governo federal precisa entender que se trata de uma questão nacional e que é seu dever lidar com isso. Nenhum Estado tem condições de dar conta desse controle sozinho.”
‘Pacificação’ versus confronto
Com a “falência” da política de pacificação e o aumento da criminalidade, especialistas dizem que a doutrina policial que preconiza o confronto armado está voltando a ganhar força. A política das UPPs foi baseada em estratégias de policiamento comunitária – embora, considera Julita Lemgruber, elas não tenham sido bem sucedidas em consolidar esse vínculo com as comunidades.
Porém, o velho modelo das operações policiais em favelas para confrontar o tráfico não foi abandonado, e, com o acirramento da crise e da violência, volta a se intensificar.
O aumento do número de pessoas mortas pela polícia reflete o aumento de confrontos. Nos últimos cinco anos (2012-2016), o número de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial aumentou 120%, chegando a 920. Em 2012, o patamar mais baixo na última década, foram 419 mortes. Já em 2007, antes das UPPs, o número de mortos por policiais chegou a 1.330.
“As perdas de vida decorrentes desse conjunto de ações são definidas, cinicamente, como casualties, efeitos colaterais de medidas ‘necessárias’. Como dizia (o ex-secretário de Segurança Pública José Mariano) Beltrame, e outros antes dele: ‘Não se fazem omeletes sem quebrar ovos'”, diz Luiz Eduardo Soares.
“Eu acrescento: desde que não sejam seus filhos. Os efeitos dessa orientação irresponsável, mesmo criminosa, são trágicos.”
Da BBC