Brasil se torna pioneiro em reconstrução de vagina com pele de peixe
Seis mulheres com uma malformação congênita rara já foram operadas
Maria conta que chegou a passar por uma cirurgia de abertura de hímen, pois os médicos achavam que era esse o problema. Depois passou por pelo menos sete hospitais e vários outros médicos em busca de um diagnóstico, sempre sem solução. A jovem então foi direcionada para o hospital Maternidade Escola, da UFC, e foi lá que descobriu o que tinha. “A médica me disse que eu não tinha o canal interno da vagina, que eu não tinha útero nem ovários. Disse que eu nunca ia menstruar e que o meu caso era cirúrgico. Imediatamente entrei na fila.”
Cinco meses depois, recebeu uma ligação do hospital e um convite para participar da pesquisa com a técnica cirúrgica inédita, usando a pele de peixe. Maria topou na hora e dias depois já estava internada para o procedimento. Realizou a cirurgia e ficou quinze dias em repouso, esperando a cicatrização. Depois da alta, aguardou seis meses até ter a primeira relação sexual com o seu namorado na época, hoje seu marido. “Foi supertranquilo, não doeu nada”, afirma.
Maria diz que os anos de demora no diagnóstico foram um tormento, mas que a cirurgia mudou sua vida por completo. “Hoje não tenho mais dor nenhuma, não tomo remédios, tenho uma vida normal. E, como não posso ser mãe biológica, pretendo adotar umas três crianças. Eu e meu marido já estamos nos informando sobre isso”, afirma.
Pele de peixe
A ideia de usar a pele da tilápia na reconstrução vaginal surgiu do professor adjunto em ginecologia e obstetrícia da UFC Leonardo Bezerra, em parceria com a professora Zenilda Bruno, chefe da Divisão Médica do hospital escola. Isso ocorreu porque pesquisadores da Universidade Federal do Ceará, liderados pelo professor Edmar Maciel, também são pioneiros no uso da pele desse peixe no tratamento de pessoas queimadas – mais de 300 pacientes já trataram suas queimaduras com sucesso usando a tilápia como enxerto.
Hoje em dia, o tratamento padrão para reconstrução do canal da vagina usa a pele retirada da região da virilha da própria paciente. O problema é que se trata de um procedimento invasivo, o corte é muito grande, ocorre muito sangramento, a cicatrização é mais demorada e há mais riscos de infecções.
“Acendeu uma luzinha na minha cabeça, como no Professor Pardal. Pensei: por que não tentar usar a tilápia com a neovagina, se o tecido respondeu tão bem em queimados?”, lembra Bezerra. Como a universidade mantém um serviço de atendimento a adolescentes com esse problema, os pesquisadores foram buscar voluntárias – tudo formalizado dentro das normas de pesquisa clínica. A ideia contou com o apoio do Núcleo de Pesquisas e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da UFC, coordenado pelo professor Odorico de Moraes.
Antes de ser usada na paciente, a pele da tilápia é cortada, processada e passa por um processo de limpeza e de esterilização química que mata todo o DNA do tecido, vírus e possíveis outros focos de contaminação. O processo remove todas as escamas de odores da pele e o que resta é um tecido gelatinoso e esbranquiçado, rico em fibras de colágeno – fundamentais para o sucesso do tratamento. Esse material pode ser armazenado por até dois anos em embalagem estéril e refrigerada.
“Encontramos o grande ovo de Colombo: a tilápia tem um custo baixo e é o principal peixe criado em cativeiro no Nordeste. É muito farta essa produção, é um material de fácil disponibilidade. Para cada cirurgia, usamos cerca de um peixe e meio apenas”, explica o professor Bezerra.
Segundo Bezerra, o canal da vagina possui entre 6 e 9 centímetros. Para reconstruí-la, os médicos inserem um molde acrílico ou de silicone, com cerca de 3 centímetros de diâmetro, recoberto com a pele da tilápia, no espaço criado entre a bexiga e o reto. O dispositivo permanece interno por cerca de dez dias para evitar que as paredes se fechem. Durante esse período, a pele da tilápia vai sendo absorvida pelo organismo da paciente e as células vão se transformando num ambiente funcional praticamente idêntico ao que seria o original. “A hipótese é que o colágeno da tilápia estimule a migração celular e a produção de novas células no local”, diz o professor.
Além de a pele da tilápia ser biocompatível (absorvida pelo organismo humano), Bezerra diz que a cirurgia realizada com essa técnica tem recuperação mais rápida do que pela técnica tradicional. Após a cirurgia, a paciente precisa usar um absorvente interno por pelo menos três meses para evitar que as paredes se fechem. A relação sexual está liberada a partir de seis meses do procedimento. Segundo Bezerra, das seis pacientes já operadas, três já tiveram relações sexuais normalmente e sem dores. As outras três ainda não tiveram relações.
Para o futuro, os pesquisadores têm várias ideias. Uma delas é expandir a pesquisa e recomendar o uso da técnica em mulheres com atrofia genital pós-quimioterapia, por exemplo, para mulheres com incontinência urinária, prolapso genital (queda do útero) e até mesmo na cirurgia de redesignação sexual de mulheres transexuais (hoje os médicos usam a pele do pênis da paciente e nem sempre dá certo).
“Isso tudo ainda é um desejo. O próximo passo agora é realizar um estudo multicêntrico em vários centros do Brasil para replicar a técnica e ver se os resultados são iguais. E, dando certo, ver como colocar essa cirurgia na rotina. Com certeza muitas mulheres serão beneficiadas”, diz o professor. Se a paciente não faz a cirurgia, o único tratamento é usar por meses um dilatador vaginal, para forçar por meio das microlesões a abertura do espaço vaginal. “É um tratamento muito doloroso e cruel. Nenhuma mulher quer passar por isso.”
Por Fernanda Bassette/Veja