Aula de crochê na cadeia muda realidade de presos
Designer ensina técnica em penitenciária de Guarulhos; ex preso trabalha com arte e quer abrir o próprio negócio
Anderson Figueredo lembra bem quando, há um ano e meio, um professor chegou à cadeia com a sacola recheada de linhas e agulhas. Naquela época, ele não poderia imaginar como as suas mãos que colaboraram com o tráfico de drogas pudessem servir à arte. “Foi muito esquisito”, conta o ex-preso de 34 anos sobre a primeira experiência com o crochê, quando ainda estava em uma penitenciária em Guarulhos, na Grande São Paulo.
O professor era Gustavo Silvestre, um designer e artesão de 39 anos que teve a ideia de ensinar a técnica a uma turma de presos – todos homens. “Com o crochê, você vê seu tempo se materializar na sua frente e virar alguma coisa. Pensei: isso é muito legal para os caras que estão na penitenciária, têm tempo disponível. É uma energia de transformação poderosa. Por que não?”
A ideia ganhou corpo no Projeto Ponto Firme que, em dois anos de existência, já formou cerca de 100 alunos na cadeia. E continua. Todas as quartas-feiras, Silvestre vai voluntariamente à penitenciária, onde passa três horas ensinando a costura aos detentos. No fim de cada módulo, os presos recebem um certificado e, a cada 12 horas de aula, têm um dia de redução da pena. “É muito legal ver essa força masculina em algo que foi tachado como feminino”, diz o artesão.
O gosto dos presos pela arte, no entanto, nem sempre é instantâneo. “Vou falar a verdade. Quando começaram as aulas eu não tinha interesse nenhum. Nenhum mesmo. Não sabia nem por onde começar”, conta Figueredo. Mas a prática construiu, aos poucos, a intimidade com as agulhas. “O Gustavo foi mostrando algumas coisas que se pode fazer e fui me interessando e até gostando”.
No início, segundo Figueredo, os colegas de prisão achavam graça da atividade. “Depois o pessoal começou a ver que estava ajudando a cadeia toda porque mostrou que tinha gente ali que estava querendo se regenerar de verdade”. Para Silvestre, a arte tem ainda o potencial de integrá-los. “Uma coisa linda do processo é que eles vão ensinando os outros, vão se organizando”. Fora das aulas, os presos também podem exercitar a técnica com os kits deixados pelo professor.
Pai de dois filhos – uma menina de 9 e um menino de 11 –, Figueredo conta que o crochê o ajudou a passar de forma mais tranquila pela experiência do encarceramento. “Me mostrou outros rumos, que a gente pode ter uma chance de recomeço. Sofri muito lá dentro, demorou para aprender, mas aprendi a lição. Através do crochê, consegui perceber o quanto estava perdendo.”
Após ser solto, há 4 meses, Figueredo procurou Silvestre – dessa vez para uma parceria: o ex-preso hoje ajuda o “professor” em um trabalho artístico de cobrir pedras com os tecidos feitos manualmente. “Eu uso o crochê como uma ferramenta de transformação. Assim como o fio, que se transforma no que você quiser”, diz Silvestre. O designer quer agora garantir, por meio de novos projetos, que os presos que deixam a cadeia tenham chance de reinserção. “Se eles não têm outra alternativa, voltam para o crime. Errar todo mundo erra. Temos de dar opções.”
Reconquistar a confiança daqueles que o cercam é um dos novos desafios de Figueredo, que, além do crochê, faz bicos e sonha em ter seu próprio negócio no artesanato. O duplo preconceito – com o seu passado, na penitenciária, e o presente, em meios às agulhas – não o intimida. “Eu não ligo para nada. O mais importante eu tenho hoje em dia: a minha liberdade.”
Livre para produzir. Para Silvestre, conhecer o crochê também foi algo libertador. O designer se viu oprimido pela indústria da moda, marcada pelo descarte. “Fui à China para ver como eles produziam. Achei assustadora a quantidade de lixo. Comecei a pesquisar e procurar o lado da sustentabilidade, o lado inverso. Isso foi me aproximando do artesanato até chegar ao ‘danado’ do crochê.”
A autossuficiência que o crochê permite é, segundo Silvestre, a grande vantagem da técnica. “É você, sua, linha, sua agulha e seu tempo. Eu estava cansado dos meios de produção da moda”, diz. Silvestre teve de fazer um curso para aprender, embora a técnica já estivesse há anos no DNA da família.
“Sempre vi as mulheres fazendo, mas elas nunca me ensinaram por causa dessa barreira do preconceito. Minha mãe deve ter percebido meu interesse porque eu ficava fascinado. Saía de manhã para ir à escola e ela pegava uma toalha. Quando eu voltava, a toalha estava pronta com um barrado lindo em crochê”, lembra. “O crochê me reconectou com essa história, com o feminino que estava dentro de mim”, diz ele, que hoje faz peças sob encomenda e ainda dá cursos.
Quem também desatou os nós do estereótipo de gênero na costura foi o artista plástico Thiago Rezende, de 35 anos, que aprendeu os primeiros pontos de crochê por meio de vídeos no YouTube. Autor do projeto Homem na Agulha, hoje ele ajuda a popularizar a técnica. “Minha avó fazia, mas a visão que eu tinha era de que era uma atividade para senhoras.”
Rezende oferece cursos de crochê pelo Brasil e levou as linhas e agulhas até para o exterior. “Por ser um homem ensinando, acabo atraindo homens, que se sentem mais à vontade. Mas as turmas, geralmente, são mistas. A ideia não é segregar as mulheres e dar aula só para eles.”
Em cursos voltados para mulheres idosas, a presença de um professor no comando das oficinas causava um estranhamento inicial. “Provavelmente estavam esperando uma professora. Faltam representantes masculinos da técnica”, conta. “Mas, no decorrer do curso, elas percebem que sei do que estou falando.”
Em três anos de oficinas, ele explica que gente de todo tipo já topou o desafio de aprender o crochê. De pessoas com interesse comercial àquelas que queriam apenas relaxar e até crianças. “O crochê não tem idade certa para aprender. Uma criança um pouco maior, que tenha coordenação motora fina, já consegue fazer.”
Com o Estadão(Conteúdo)