Apreensão de drogas K em SP aumenta 10 vezes em um ano
De janeiro a outubro de 2023, 113 kg do entorpecente foram retirados das ruas; no ano passado, foram apreendidos 11,6 kg
A apreensão no estado de São Paulo de drogas K, que podem ser 100 vezes mais potente que a maconha e provocar efeitos destrutivos, já é quase dez vezes maior em 2023 do que em todo o ano de 2022.
De janeiro a outubro deste ano, a Polícia Civil retirou 113 kg do entorpecente das ruas de todo o estado. No ano passado, a apreensão foi de 11,6 kg, e em 2021, de 5,7 kg.
Os dados são do Denarc (Departamento de Investigações sobre Narcóticos) e foram disponibilizados pela SSP (Secretaria de Segurança Pública).
As drogas K são conhecidas por diversos nomes, como K2, K4, K9 e spice. Os entorpecentes são produzidos em laboratórios clandestinos e causam grande preocupação à segurança pública e ao sistema de saúde.
Na contramão desse movimento, o sistema penitenciário – onde essas drogas sintéticas se espalharam inicialmente em São Paulo pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) – vem apresentando sucessivas quedas na quantidade de apreensões. Comparando-se os últimos quatro anos, a redução foi de 85%.
Em 2020, ano que marcou o início da pandemia de Covid-19, a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) registrou 1.565 apreensões nas 182 unidades prisionais do estado: 169 com visitantes e 1.396 em correspondências.
Confira os dados dos anos anteriores:
• 2021: 1.145 apreensões, com 158 visitantes e 987 em correspondências;
• 2022: 300 apreensões, com 151 visitantes e 149 em correspondências;
• de janeiro a setembro de 2023: 225 apreensões, com 128 visitantes e 97 em correspondências.
Segundo o promotor de Justiça Tiago Dutra Fonseca, do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) de Rio Preto, o PCC usou o sistema prisional paulista como um laboratório para testar a produção, a distribuição e o consumo da K4 a partir de 2019.
Esse tipo de entorpecente é produzido na forma líquida e depois borrifado em cartões, fotos, papéis ou selos. Por isso, era facilmente contrabandeado por meio de correspondências para os presídios, principalmente no período da pandemia.
“As investigações oficiais demonstraram que a facção tinha um setor próprio para tratar de K4 e uma contabilidade própria. Em uma estimativa bem conservadora da época, de 2019 e 2020, girava mais de R$ 1 milhão por mês da facção dentro do sistema”, afirma Fonseca.
O promotor de Justiça também explica que a produção das drogas K é de baixo custo e de fácil acesso. Como há diversas possibilidades de matéria-prima, que vão desde o analgésico fentanil até solventes industriais vendidos em mercados, a variedade de fórmulas do entorpecente é ampla. O que dificulta o trabalho de fiscalização e identificação da polícia.
“Esse know-how foi expandido para diversos integrantes da facção. Cada um desenvolvendo sua fórmula e sua própria produção para ganhar dinheiro. Isso impediu que a facção adquirisse o monopólio dessa distribuição. Algo que era controlado [pelo PCC] com um ‘padrão de qualidade’ passou a ser desenfreado”, relata Fonseca.
As drogas K ainda provocaram episódios de surtos psicóticos e de agressividade entre os presos. Como os efeitos do entorpecente estavam atrapalhando os negócios, o PCC emitiu um “salve” determinando a proibição de sua comercialização no interior do sistema penitenciário paulista. Por isso, a venda das drogas sintéticas passou a se intensificar nas ruas, como na região da Cracolândia, no centro de São Paulo.
Ao R7, o delegado Fernando Góes Santiago, do Denarc, explica que, inicialmente, a droga surgiu como uma maconha sintética, consequentemente com o objetivo de simular os efeitos da Cannabis sativa. Criada nos Estados Unidos, a substância passou a ser detectada com mais frequência no Brasil a partir de 2019.
“Com a popularização, [a produção] se desvirtuou. Começaram a acrescentar muitas substâncias. No início, [a matéria-prima] era MDMB, que é um canabinoide sintético. Hoje, a K9 presente nas ruas tem, por exemplo, solvente. Começaram a sintetizar produtos que têm no mercado lícito, como o solvente, o que barateou o preço da droga”, exemplifica Santiago.
Atualmente, segundo o delegado, as drogas K costumam ser produzidas a partir do GBL (gama-butirolactona) e do butanodiol, substâncias utilizadas na produção industrial e vendidas no mercado legal. Eventualmente, os traficantes também usam a quetamina — um anestésico para cavalos — como matéria-prima.
Como a produção é de fácil acesso e barata, teoricamente qualquer um poderia vender a droga sintética. Entretanto, Santiago relembra que o PCC possui a hegemonia da comercialização de drogas no estado, portanto não é tão simples ingressar no negócio ilícito. Além disso, a facção tem o controle de grande parte das lojinhas — antigamente denominadas de biqueiras.
Segundo o delegado do Denarc, o perfil de usuários da droga K é a população mais pobre e vulnerável e se “assemelha ao público do crack”, já que o valor de venda do entorpecente é baixo. Muitos consumidores também se encontram em situação de rua.
A nota técnica da SMS (Secretaria Municipal de Saúde) de São Paulo, com orientações para assistência às intoxicações por canabinoides sintéticos, também afirma que o entorpecente encontra grande aceitação no público jovem.
A intoxicação pela droga, segundo a pasta, pode provocar diversos sintomas, como:
• vômito e salivação excessiva;
• sonolência, desorientação;
• dificuldade de respirar;
• desmaios, convulsão;
• sinais evidentes na boca ou na pele decorrentes de contato ou ingestão de substâncias químicas ou plantas tóxicas;
• lesões, queimaduras ou vermelhidão na pele, boca e lábios;
• cheiro característico de algum produto na pele, roupa ou objetos ao redor;
• alterações súbitas do comportamento ou estado de consciência.
Em 2023, a SMS já registrou 853 notificações de casos suspeitos de intoxicação por canabinoides sintéticos em pessoas residentes da capital. Os números de notificações são tanto de equipamentos de saúde públicos quanto privados. A pasta também investiga dez mortes suspeitas de terem sido causadas por drogas K.
Para o promotor de Justiça Tiago Dutra Fonseca, atualmente as drogas K representam o maior desafio para a segurança e saúde pública.
“As drogas sintéticas apresentam a inovação mais disruptiva em relação ao tráfico internacional e doméstico de drogas. O fato de qualquer pessoa com esses insumos poder produzir a própria droga dá origem a centenas de microtraficantes. Também não estamos aptos a absorver a demanda de usuários de drogas sintéticas”, reforça Fonseca.
Outro desafio apontado pelo promotor de Justiça é a capacidade de camuflagem. “São drogas que podem ser transportadas facilmente em aeroportos. Não demandam grandes logísticas em portos, aeronaves ou caminhões”, explica.
O fato de as drogas K serem uma novidade no mercado é um grande obstáculo para o trabalho da polícia, afirma o delegado do Denarc. “Nem todo agente consegue identificá-las. Temos que lembrar que [o entorpecente] entrou na portaria da Anvisa [ou seja, a substância se tornou proibida] em 2020. O estado está aprendendo a lidar com essa droga.”
Santiago reforça ainda que a facilidade dos traficantes em conseguir os insumos no mercado lícito — diferentemente do que ocorre nas cadeias de produção da cocaína e da maconha — é um dos grandes desafios do estado.
Letícia Dauer, do R7