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A mulher que fugiu para salvar dois bebês intersexuais de seus próprios pais

Há cinco anos, uma parteira no Quênia ajudou uma criança que tinha órgãos genitais masculinos e femininos a nascer.

O pai ordenou que ela matasse o bebê, mas, em vez disso, ela escondeu e criou a criança como se fosse dela. Dois anos depois, a mesma coisa aconteceu – e ela se viu obrigada a fugir para salvar a vida das crianças.

Como uma parteira tradicional no oeste do país africano, Zainab estava acostumada a realizar partos e trabalhou em dezenas de nascimentos. Mas nenhum como aquele de 2012.

Foi um parto difícil, mas nada com que ela não soubesse lidar. O cordão umbilical estava enrolado na cabeça da criança e ela precisou agir rapidamente, usando uma colher de madeira para desenrolá-lo.

Depois de liberar as vias respiratórias e limpar o bebê, ela cortou o cordão umbilical e viu algo que nunca tinha visto antes.

“Quando olhei para saber se era menino ou menina, eu vi uma protusão – esse bebê tinha órgãos masculinos e femininos”, disse.

Em vez de dizer o que estava acostumada em momentos como aquele – “É um menino”, ou “É uma menina” -, Zainab apenas entregou a criança à mãe e disse: “Aqui está seu bebê”.

Quando a mãe, exausta, viu que o sexo do bebê não estava definido, ficou impressionada. O marido chegou e não teve dúvidas do que deveria ser feito.

“Ele me disse: ‘Não podemos levar esse bebê para casa. Queremos que ele seja morto’. Eu disse que a criança era uma criatura de Deus e que não poderia ser morta. Mas ele insistiu. Então respondi: ‘deixe o bebê comigo, eu o matarei para você’. Mas eu não o matei, eu fiquei com ele”, conta Zainab.

Ilustração de um pescador

O pai voltou a procurar Zainab várias vezes para garantir que ela tinha cumprido a promessa. Ela escondia a criança e dizia que havia matado o bebê. Mas isso não funcionou por muito tempo.

“Um ano depois, os pais ouviram dizer que o bebê estava vivo e vieram me ver. Disseram que eu jamais poderia revelar que o bebê era deles. Eu concordei e desde então crio a criança como se fosse minha.”

Crenças tradicionais

Foi uma decisão rara – e arriscada.

Na comunidade de Zainab, assim como em outras no Quênia, um bebê intersexual é visto como mau presságio, que traz maldição para a família e os vizinhos. Ao adotar a criança, Zainab estava desrespeitando as crenças tradicionais e corria risco de ser responsabilizada por qualquer infortúnio.

Isso foi em 2012. Dois anos depois, Zainab ficou impressionada ao se deparar, durante mais um parto, com um segundo bebê intersexual.

Apesar de não haver estatísticas confiáveis sobre quantos quenianos são intersexuais (ou seja, nascem com os dois órgãos sexuais), os médicos acreditam que a incidência seja a mesma de outros países – aproximadamente 1,7% da população.

“Dessa vez, os pais não me pediram para matar a criança. A mãe estava sozinha e simplesmente fugiu, e me deixou com o bebê.”

Mais uma vez, Zainab levou a criança para casa e a criou como parte da família. Mas o marido dela, um pescador no lago Victoria, não gostou da ideia.

“Quando íamos ao lago pescar e a pescaria era ruim, ele colocava a culpa nas crianças. Ele disse que elas tinham lançado uma praga sobre nós e sugeriu que eu entregasse as crianças para que ele pudesse afogá-las no lago. Eu disse que jamais permitiria aquilo. Ele então ficou violento e começamos a brigar o tempo todo”, contou.

Zainab ficou tão preocupada com o comportamento do marido que decidiu deixá-lo e levar as crianças consigo.

“Foi uma decisão difícil porque financeiramente eu tinha uma situação confortável com meu marido, já tínhamos filhos criados e até netos. Mas ninguém consegue viver em um ambiente com tantas brigas e ameaças. Eu fui forçada a fugir.”

As condições de nascimento de crianças vêm mudando no Quênia. Cada vez mais, as mulheres têm trocado os vilarejos por hospitais ao dar à luz. Mas até pouco tempo o uso de parteiras era regra, e havia uma norma tácita sobre como lidar com bebês intersexuais.

“Elas costumavam matar essas crianças”, diz Seline Okiki, diretora do Ten Beloved Sisters, grupo de parteiras tradicionais do oeste do Quênia.

“Se um bebê intersexual nascia, automaticamente era visto como maldição e não poderia viver. Já era comum entre as parteiras – elas matavam as crianças e diziam às mães que o bebê havia nascido morto.”

Ilustração de mãe com duas crianças

Na língua luo, havia até mesmo um eufemismo para como os bebês eram mortos. As parteiras diziam que elas haviam “quebrado a batata doce” – uma referência ao uso de uma batata doce dura para quebrar e danificar o cérebro frágil e delicado dos bebês.

“Os pais não tinham nenhum poder de decisão nesse assunto. A expectativa era que o bebê nem ficasse tanto tempo vivo a ponto de chorar”, afirmou Anjeline Naloh, secretária do Ten Beloved Sisters.

Atualmente, o grupo deixa os partos para as responsáveis nos hospitais, e trabalha alertando as mães e gestantes sobre a transmissão do HIV. Mas em áreas mais remotas, onde o acesso aos hospitais é difícil, as parteiras ainda promovem nascimentos da forma tradicional e o grupo acredita que o infanticídio ainda aconteça em certas regiões.

“É escondido. Não é tão aberto como era antes”, disse Anjeline Naloh.

Ilustração de banhistas no Lago Victoria

Seline Okiki concorda: “Essas coisas ainda acontecem, mas são segredos agora”.

Para Georgina Adhiambo, diretora-executiva da ONG Voices of Women, que trabalha para reduzir o estigma contra pessoas intersexuais no Quênia, o assunto ainda seja um tabu.

“Encontramos pessoas que tentaram esconder crianças intersexuais, ou até trancá-las porque estavam com vergonha ou medo de que os outros pudessem machucá-las”, conta.

“Temos explicado quem as pessoas intersexuais realmente são. Esta é uma sociedade muito religiosa, então explicamos que as crianças intersexuais também são criaturas de Deus”.

Mas a endocrinologista pediátrica Joyce Mbogo, integrante de uma nova geração de médicos treinados especificamente para lidar com problemas de desenvolvimento sexual (DSD, na sigla em inglês), afirma que a atitude em relação a crianças intersexuais já começa a mudar.

“Temos um novo grupo de pais que estão dispostos a procurar ajuda. A internet é acessível até em áreas rurais, então eles podem pesquisar e procurar saber do que se trata.”

As opções de tratamento variam muito. Alguns pacientes não precisam de cuidados, enquanto outros podem precisar de remédios ou terapia hormonal. Há ainda aqueles que precisam de cirurgia – opção que costuma ser protelada até a puberdade, para que a própria criança possa escolher seu sexo.

ILUSTRAÇÃO: CHARLOTTE EDEY

Para os filhos adotivos de Zainab, essas decisões ainda estão distantes. As crianças são saudáveis e felizes – a parteira abre um sorriso ao falar sobre elas, e expressa orgulho da vida que construiu. Ela ainda faz partos quando necessário, mas vive do comércio de roupas e sandálias.

“Nós nos alimentamos bem e consigo ver que elas são crianças normais. Nós conversamos, a mais velha ajuda com as coisas de casa e meu filho as trata como irmãos. Eles são minha família e é um milagre de Deus.”

Questionada sobre algum eventual arrependimento, ela ri como se fosse uma pergunta ridícula.

“Eu deveria me livrar delas? Não, eu sou mãe delas. Elas são seres humanos e eu tenho que cuidar das criaturas de Deus”.

Por BBC Brasil