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A ideia de que ‘prender todo mundo’ acaba com a corrupção é ingênua, diz cientista político

Em meio àqueles que comemoram as mais recentes denúncias e prisões da operação Lava Jato, muitos veem nelas um motivo adicional para uma descrença total nos políticos brasileiros.

Eduardo Cunha

O deputado cassado e ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha foi condenado a 15 anos de prisão, a primeira condenação da Lava Jato – Direito de imagem HEULER ANDREYI

O clima de revolta com os políticos se acirrou ainda mais após a divulgação na semana passada das delações dos executivos da JBS e das conversas mantidas por um dos donos da empresa com o presidente Michel Temer e, em outra ocasião, com o senador Aécio Neves (PSDB-MG).

Nas redes sociais, têm sido comuns manifestações de revolta que vão desde “prendam todos os corruptos” e até a negação quase total da política – “ninguém presta”.

Para o economista e cientista político Bruno Pinheiro Wanderley Reis, as duas lógicas são perigosas – e nenhuma delas resolverá a crise política que assola o país desde 2014, porque “prender corruptos não significa extinguir a corrupção”.

“A leitura aí é que você prende os corruptos, e então vão ficar só os não-corruptos. Isso é conversa fiada, uma bobagem”, afirma.

“É ingenuidade achar que a Lava Jato vai extinguir a corrupção”, acrescenta.

Reis compara a corrupção aos vírus de computador – por mais que se criem antivírus, eles não vão ser capazes de extinguir todos os vírus existentes.

“Você tem que combater corrupção, sim, é uma tarefa permanente do Estado, mas é mais ou menos como empresa de computação criando antivírus. Ela não vai conseguir extinguir os vírus. Ela vai fazer antivírus o tempo todo. Isso não tem um ponto de chegada”, exemplifica.

Reis diz ainda que o desafio do Brasil não é descobrir como se livrar de políticos corruptos, mas sim como proteger o político da corrupção ativa praticada pela sociedade.

Para o professor na UFMG e pesquisador do estudo Dinheiro e Política: A Influência do Poder Econômico no Congresso Nacional, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a corrupção na política brasileira “não é mais fator desviante, e sim comportamento padrão”.

E a solução, ele garante, não está em “prender todo mundo”, mas em uma boa reforma do atual sistema político – que, em suas palavras, “é corrupto por lei”.

Leia os principais trechos da entrevista com Bruno Pinheiro Wanderley Reis.

BBC Brasil: O senhor costuma dizer que a “conduta de corrupção na política brasileira não é mais fator desviante, mas comportamento-padrão”. Como e por que se chegou a essa situação?

Bruno P. W. Reis: No Brasil, o dispositivo específico, que só incide aqui, é que o teto de doação (de campanha) tem que ser proporcional ao do doador. Até 2014 (quando doações de empresas eram permitidas), era no máximo 10% do rendimento da pessoa ou 2% do faturamento bruto da empresa. Qual é a lógica que isso cria? O candidato só ia pedir dinheiro às empresas que mais faturam, às pessoas mais ricas. Aí entram bancos, mineradoras, empreiteiras.

Bruno Pinheiro Wanderley Reis
Bruno Pinheiro Wanderley Reis é cientistas político pelo Ipea – Direito de imagem REPRODUÇÃO

Então fica claro que você vai ter um jogo – porque só pouquíssimas empresas podiam doar bilhões dentro dessa regra.Obviamente isso vicia o sistema político e o jogo eleitoral. Vai arrecadar mais o candidato que tiver boas relações e bom fluxo de recursos com as grandes empresas, bancos, empreiteiras, mineradoras. É uma anomalia, essa regra só existe aqui no Brasil.

A gente produz uma competição de centenas de candidaturas individuais disputando dezenas de cadeiras em distritos com milhões de eleitores. E isso é muito difícil de fiscalizar, os TREs (Tribunais Regionais Eleitorais) são admiráveis, mas é impossível governar um sistema em que concorrem mais de mil candidatos na mesma circunscrição.

Enquanto no resto do mundo você tem uma dezena de chapas disputando favores e doações de milhares de doadores, aqui no Brasil a gente faz uma competição em que milhares de candidatos disputam os favores financeiros de uma dúzia de doadores potenciais.

Você vai ter uma elite parlamentar, tanto de vereadores quanto de deputados, extremamente dependente de poucos grandes financiadores. Isso é um sistema que dá um poder sem igual a financiadores, a agentes privados que legitimamente têm seus interesses políticos e as suas prioridades próprias. Só que nenhum país deixa seu representante político tão vulnerável a seu financiador.

São as grandes empresas, as doadoras, quem dá as cartas nesse sistema (brasileiro).

BBC Brasil: Em 2014, o senhor fez uma análise sobre a Lava Jato dizendo que a estratégia adotada por ela com as delações premiadas seria “autodestrutiva” para a política e que ela estaria apenas “enxugando gelo”. Por que o senhor acredita nisso?

Reis: A delação premiada foi inventada pra pegar máfias, porque máfias têm uma rede de silêncio. Então você pega um cara que esteja encrencado e oferece algo em troca para pegar mais gente. E isso é eficaz. Você puxa um fio e chega até o topo. Mas para mim esse é o pecado crucial da Lava Jato. A gente quer desbaratar a máfia, mas a gente não quer desbaratar o sistema político todo.

Em vez de a gente usar o sistema de controle, que está cada vez melhor, canalizar as investigações para captar os problemas e solucionar mudando a legislação (do sistema eleitoral), a gente está querendo puxar o fio – e isso é extremamente destrutivo.

Eu não aplicaria a delação premiada. A exposição do (setor do) petróleo, com identificação de diretores que estavam recebendo propinas, já é um mega choque no sistema, que provavelmente mudaria práticas. Agora, o que você tem é uma clara deterioração institucional, está um salve-se quem puder.

A capacidade da Lava Jato de investigar pessoas tão poderosas deriva da estabilidade relativa do sistema político de 1988 para cá. Essa é a parte mais triste. Esse sistema que está aí agora é o sistema menos malsucedido que esse país já foi capaz de por em pé em toda a sua história. A ideia de que o próximo vai ser melhor é só uma esperança.

BBC Brasil: Como o Sr. vê o futuro da Lava Jato?

Reis: Estamos em uma situação em que todo mundo que é preso a gente já começa a pensar, qual será a delação? É uma bola de neve. Isso não vai acabar. Quando vai acabar? Quando o país todo estiver na cadeia, aí você joga a chave fora? Quando vier um “salvador da pátria”?

Nesse momento, ninguém consegue aprovar no Congresso medidas que limitem a atuação das investigações, mas vai acontecer. No momento em que o sistema se reestabilizar, cedo ou tarde isso acontece, algum salvador da pátria que vai ser eleito vai ter que voltar a ter o dispositivo de poder. Para fazê-lo de maneira confiável, crível pelos atores, vai precisar pôr limite na atuação do Judiciário. E é aí que a ambição de limpeza se mostra destrutiva.

Congresso
Congresso Nacional praticamente vazio durante sessão plenária – Direito de imagem ANDRESSA ANHOLETE

BBC Brasil: Mas não seria tarefa do Estado combater a corrupção em operações como a Lava Jato?

Reis: Você tem que combater corrupção, sim, essa é uma tarefa permanente do Estado. Mas é mais ou menos como funciona em uma empresa de computação que cria antivírus. Ela não vai conseguir extinguir os vírus, aboli-los. Ela vai fazer antivírus o tempo todo. Isso não tem um ponto de chegada. Para isso, você tem que ir aperfeiçoando por rotinas burocráticas, administrativas, etc. a capacidade do sistema de controlar a corrupção. A gente vinha fazendo isso.

Nossa capacidade de combater a corrupção hoje é muito maior do que há 30 anos. Agora, do jeito que vai, vai piorar. Porque o sistema está sendo desarticulado na sua teia de interesses, na sua capacidade de autocontrole. A gente está num processo de autodestruição. O que poderia acontecer de pior seria o desmantelamento do sistema partidário, que foi o que aconteceu na Itália, algo catastrófico.

BBC Brasil: Mas se a ‘culpa’ pela corrupção que toma conta da política hoje em dia é do sistema eleitoral, a Lava Jato não poderia ajudar a “consertá-lo”?

Reis: Não é função da primeira instância, mas o Supremo tem um papel nisso. E nas declarações dos líderes da operação Lava Jato aparece essa intenção também, de “limpar o sistema”. E nisso eles são precisamente ingênuos. Não é que você só pode investigar se for fulano, sicrano e beltrano, mas não pode pegar os graúdos. Não, não é isso. Se você está tocando a investigação e caiu no colo uma prova contra o presidente da República, você tem que denunciar. Agora, o que a gente está fazendo aqui é uma busca retórica de incriminação de políticos importantes, que é guiada por uma ambição ingênua de purificação do sistema – algo que eu entendo que é contraproducente.

A leitura da Lava Jato é a de que você prende os corruptos, e então você vai ter somente os não-corruptos. Mas isso é conversa fiada, uma bobagem. É demagogia.

O desafio não é como a gente se livra de político corrupto, mas como a gente protege o político da corrupção ativa praticada pela sociedade.

Então em vez de a gente reformar a lei, a gente prende os caras. Os representantes votados pelo eleitorado, induzidos por essa grana. Mas aí foi preso porque estava cheio de dinheiro – e quem é o suplente? De onde ele recebeu dinheiro? Estamos enxugando gelo, desestabilizando um sistema que é estruturalmente viciado e mantido vigente. E ninguém fala em mudar a lei. A discussão não vai a lugar nenhum.

BBC Brasil: Como, então, se combate a corrupção?

Reis: O que me preocupa aí é a sustentabilidade desse combate à corrupção. Eu não vejo isso com bons olhos quando tenho a impressão de que o lastro institucional que viabilizou com melhoria nítida o combate à corrupção está em desarranjo. Pode ser que dê certo? Pode ser, por acaso. O normal é ter conflito, o que se espera de processos como o que a gente está metido é uma desorganização profunda do lastro partidário e subsequente comprometimento do controle da corrupção.

BBC Brasil: Qual seria o sistema político mais viável para o Brasil – e que não “favoreça” a corrupção?

Reis: Como meu diagnóstico está baseado numa interação infeliz entre o sistema eleitoral e as regras de financiamento, eu mudaria essas duas coisas, no que diz respeito ao início do processo. Quer dizer, você tem que ter tetos nominais para doações, e de números razoáveis, da ordem de milhares de reais. Eu manteria empresa e pessoa física, desde que cada um esteja doando (até) R$ 10 mil, R$ 50 mil… Não resolve todos os problemas, mas fica menos ruim.

A primeira solução seria essa: tetos que não permitam que nenhum doador individual seja o dono de uma campanha. Isso já tenta induzir uma fragmentação da fonte de recurso.

Do outro lado, se o sistema eleitoral produz uma demanda muito alta por recursos fragmentados, eu tenho que tentar concentrá-lo. O que eu faria? Fecharia a lista (voto em lista fechada significa voto em partidos, e não em candidatos a deputados). E diminuindo o número de candidatos, a eleição fica mais controlável, mais fiscalizável. E por fim, eu subiria o quociente eleitoral, que automaticamente diminuiria o número de partidos no plenário.

É simples, não é inventar a roda.

Da BBC (Conteúdo)