110 anos de Frida Kahlo: como mexicana se tornou uma das mulheres mais conhecidas do mundo?
Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderón, mundialmente conhecida por Frida, seguido do sobrenome alemão herdado do pai, Kahlo, completaria 110 anos no próximo dia 6.
Desde a sua morte, em 1954, em sua casa na Cidade do México, vida e obra da pintora se tornaram famosas principalmente pela América e Europa.
Além das pinturas e esculturas feitas durante sua curta vida, fotografias, vídeos, documentos, desenhos, cartas e até o diário íntimo da artista viraram objetos de interesse público.
“O conceito de usar a si mesma como tema de sua obra elevaram Frida a um lugar excepcional”, aponta o escritor mexicano Francisco Haghenbeck, autor do livro O segredo de Frida Kahlo.
As principais obras da pintora são seus autorretratos – especialmente uma série de quadros em que ela aparece de corpo inteiro, muitas vezes sangrando, sofrendo e em hospitais.
Na última década, os objetos artísticos e pessoais da mexicana têm circulado o mundo em diversas exposições. E a imagem de Frida também se transformou em um ícone pop: seu rosto estampa camisetas, canecas, ímãs de geladeira, bolsas e diversos produtos.
“Kahlo reúne em uma só pessoa e obra vários elementos que contribuíram para que sua imagem se tornasse em mito: o exótico, o mundo subdesenvolvido como pano de fundo e o ser mulher, além de um talento plástico inegável e original”, disse à BBC Brasil a professora da Universidad Autónoma Metropolitana de Xochimilco, Eli Bartra, autora de Frida Kahlo. Mujer, ideología, arte.
Mito
Segundo Bartra, o mito em torno de si começou a ser construído pela própria artista em vida. “Nos lugares por onde passou, na Europa e nos Estados Unidos, a vida e a obra de Frida despertaram muito interesse. Com sua morte, estes lugares deram continuidade a construção do mito.”
“Logo veio o interesse das feministas alemãs, por causa de sua origem alemã e por causa do nome ‘Frida’. O movimento de ‘chicanos’ (mexicanos que moram nos EUA) também passou a se interessar pela figura da artista por acreditar que ela representava uma mexicanidade por excelência”, explica a pesquisadora.
Para Haghenbeck, o “mito Frida” também foi reforçado pelos romances que a pintora teve com personagens famosos de sua época.
“O amor e atração de personagens como André Breton, Trotsky, Picasso e Rockefeller, além de Diego Rivera, ajudaram a tornar conhecida e venerada a vida de Frida, de personalidade forte e dócil, alegre e sofrida”, afirma o escritor.
Frida Kahlo casou-se duas vezes, em 1929 e em 1940, ambas com o muralista mexicano Diego Rivera. Devido a relações extraconjugais de ambos – Rivera chegou a ter um caso com a irmã de Frida, o que pôs fim ao primeiro casamento – o casal teve uma relação longa, porém conturbada.
Entre idas e vindas, a pintora teve romances com artistas e intelectuais, como Leon Trotsky, a quem Frida ofereceu abrigo político em sua própria casa, em 1937.
O acidente de ônibus, ocorrido em 1925, e as mais de 30 operações às quais foi submetida – uma barra de ferro atravessou sua barriga e virilha no momento do acidente – também contribuíram para a imagem da mulher que transformava o próprio sofrimento em arte
Para a pós-doutora em Estudos da Mulher pela Univesidad Autónoma Metropolitana de Xochimilco e professora da PUC – RS, Edla Eggert, foi esta apresentação do sofrimento humano em diversas dimensões que tornou Frida uma das artistas mais conhecidas do mundo.
“Há esse enigmático ponto de contato que ela produz com todo mundo que já viveu uma tragédia com seu corpo; há a tensão de viver um amor que, em grande medida, consumia sua vida, mas ao qual ela deu um basta em determinado momento e, por meio da criação, construiu um outro espaço para si mesma”, explica Eggert.
“Essa narrativa de Frida, que é desdobrada a cada biografia, a cada exposição, reverbera num efeito cosmopolita”, complementa.
Na principal biografia de Kahlo, escrita por Hayden Herrera, a aparência exótica da pintora, com seus adereços e vestimentas típicas de comunidades mexicanas, foi descrita como uma estratégia para tirar o foco de suas cicatrizes e deformidades físicas nas pernas e pés.
“Assim como os autorretratos confirmavam sua existência, as roupas faziam com que a mulher frágil, quase sempre presa à cama, se sentisse mais magnética, mais visível e mais enfaticamente presente como objeto físico no espaço. Paradoxalmente, eram uma máscara e uma moldura. Uma vez que definiam a identidade de quem as usava em termos de aparência, as roupas distraiam Frida — e o observador — da dor interior”, escreveu Herrera em Frida – a biografia.
Quando precisava usar coletes ortopédicos para corrigir desvios na coluna, por exemplo, Frida deixava o item a mostra e o enfeitava com os adereços, como se ele fizesse parte de sua roupa.
Segundo Herrera, à medida que a saúde de Frida piorava, seus adereços e joias foram ficando mais elaborados e coloridos. A pintora se vestia dessa maneira até nos dias em que não conseguia sair do quarto.
Eli Bartra diz que grande parte desta “Frida mito”, contudo, ajudou a criar uma “Frida pop” – uma reprodução em massa da imagem da pintora que é, muitas vezes, esvaziada de sentido.
“O que funciona agora é a mercadoria Frida. Ela foi transformada em arte popular justamente porque vende.”
A pesquisadora explica que, no México, Frida atualmente tem uma dimensão mais normal e menos mítica.
“Ela é conhecida, reconhecida e apreciada, mas em uma medida mais humana. O mito, na verdade, contribuiu para que muitos se cansassem de Kahlo”, afirma Bartra. “Frida, hoje, talvez não seja mais querida que outras pintoras nacionais, como Remedios Varo e María Izquierdo.”
Para a antropóloga e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Sônia Maluf, o sucesso contemporâneo de Frida está ligado à atualidade de sua obra, mas também a uma releitura superficial de sua vida.
“Algumas leituras acabam ‘higienizando’ Frida de dimensões que não interessaria serem ressaltadas, como seu ativismo de esquerda, sua bissexualidade e mesmo o modo como ela transformava o que seria a tragédia da mutilação física em obra de arte, em algo belo e sublime”, diz.
“O acidente e suas operações quase sempre foram abordados de maneira sensacionalista”, completa Bartra.
Feminista?
Na década de 1950, Diego Rivera descreveu Frida como “a primeira mulher na história da arte a tratar, com absoluta e descomprometida honestidade, poderíamos até dizer com uma crueldade indiferente, aqueles temas gerais e específicos que apenas dizem respeito às mulheres”.
“Ela nunca se disse feminista, pelo menos nunca se apresentou assim. Mas podemos ver como sua obra retrata um universo de mulher e de uma rebeldia contra condição social das mulheres da época”, explica Bartra.
Segundo Haghenbeck, Frida estava longe de ser a figura que hoje é apresentada como exemplo de feminismo. “Mesmo assim, ela foi uma rebelde, uma mulher firme de suas convicções e comprometida com seus ideais.”
A maneira como Frida expôs sua bissexualidade e seu casamento e o modo como retratou de maneira crua uma maternidade frustrada – a pintora sofreu três abortos espontâneos por causa das sequelas do acidente -, anteciparam questões atuais de gênero em todo o mundo.
No quadro O Hospital Henry Ford , por exemplo, a pintora retratou o momento do seu segundo aborto espontâneo, sofrido no hospital de mesmo nome.
“Feministas ainda se interessam pela obra de Frida porque ela foi capaz de expressar, plasticamente, uma rebeldia contra uma feminilidade imposta às mulheres. Ora se apresentou andrógina, ora pintou cenas de parto, abortos, assassinatos de mulheres, coisa que não se expunha até então”, aponta Bartra.
Uma das fases em que Frida mais pintou autorretratos foi durante o divórcio, em 1935, quando a artista saiu de casa e foi morar em um apartamento pobre no centro da Cidade do México.
Mesmo se recuperando de uma cirurgia que lhe amputou dedos do pé direito, ela lutou para obter independência econômica do ex-marido e passou a comercializar seus quadros.
Em Autorretrato com Cabelo Cortado, pintado durante a separação, a pintora aparece de cabelo curto – uma das longas tranças que costumava usar, e que Rivera tanto gostava, está na sua mão – e vestindo um terno masculino. Na parte superior do quadro, Frida escreveu o trecho de uma canção mexicana: “Olha, se te amei foi pelo teu cabelo; agora que estás careca, já não te amo”.
Outra obra conhecida dessa época foi o Unos Cuantos Piquetitos (1935), que retrata uma mulher nua e ensanguentada em cima de uma cama, com um homem em pé ao lado, segurando uma faca.
A obra foi feita depois que Frida leu uma notícia de que um homem matou a esposa a facadas por causa de ciúme e, ao se defender no tribunal, disse ao juiz: “foram apenas uns cortes pequenos”.
“Unos Cuantos Piquetitos é uma denúncia sobre a violência contra as mulheres e a condescendência da cultura machista para com o agressor”, observa Eggert.
O maior legado da obra de Frida, contudo, foi a ideia de que assuntos considerados privados na vida das mulheres deveriam ser tratados como políticos.
“A vida e a obra de Frida são elementos que colocam sob tensão a tradicional condição da mulher. Alguns autores consideram que o feminismo está presente em sua obra não de forma referencial, mas através da antecipação do que se tornou um lema feminista após os anos 1960: ‘o pessoal é político'”, explica Sônia Maluf.
Filha da Revolução
Frida Kahlo se declarava “filha da Revolução Mexicana”, que ocorreu em 1910, três anos após seu nascimento, e se estendeu até 1920.
Até os treze anos, ela cresceu em meio a tiroteios, conflitos populares e camponeses armados e assistiu sua mãe oferecer comida e ajuda aos Zapatistas quando estes passavam pelo bairro de Coyoacán, então periferia da Cidade do México onde morava a família Kahlo.
Já a adolescência da artista foi marcada por um México pós-revolução, um momento histórico de efervescência cultural.
“Frida amava a cultura popular mexicana, desde a comida até os trajes típicos. Era uma mulher que gostava de tacos e mariachis, não era elitista”, aponta Haghenbeck.
“Ela viveu alguns anos nos EUA, mas, mesmo estando lá, fazia festas com papel picado, tequila e usava vestidos típicos. Tanta cor e alegria, para os americanos, era algo exótico. Esse imaginário colorido deixado por Frida no estrangeiro plantou uma semente que, de 1960 em diante, levou estrangeiros ao México porque eles se lembravam dela.”
“Frida era uma metáfora do México: colorida, dinâmica, mas que sofre com grandes feridas”, acrescenta o escritor. As informações são da BBC.